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Trump e Zelensky: o que as “cenas lamentáveis” na Casa Branca ensinam ao Brasil

Marcos Jr. [1]

Na última sexta-feira (28/02), Donald Trump e J. D. Vance, respectivos presidente e vice-presidente dos EUA, e Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia, participaram de uma reunião ao vivo na Casa Branca que, no seu final, descambou para um bate-boca [2] entre os líderes de seus respectivos países.

A reunião, que era para discutir um acordo de exploração de minerais [3] em solo ucraniano como compensação pelos US$ 190 bilhões (nas contas de Trump seria um montante ainda maior, de US$ 0,5 trilhão), encerrou não só sem o acordo não sendo assinado, mas com a expulsão da diplomacia ucraniana da Casa Branca [4], além do corte de recursos americanos para o reparo das redes de energia elétrica ucranianas [5] atacadas pela Rússia no conflito.

As “cenas lamentáveis” na Casa Branca, como era de se esperar, repercutiram como um terremoto na geopolítica global: diversos líderes europeus demonstraram solidariedade à Ucrânia [6]; Emmanuel Macron, presidente da França, resolveu oferecer arsenal nuclear para que seus colegas europeus possam se defender da Rússia; enquanto isso, o Ministério das Relações Exteriores da Rússia disse que Zelensky está “obcecado a continuar a travar uma guerra [7]”.

Feito esse apanhado geral dos desdobramentos de mais um capítulo da diplomacia trumpista [8], o meu foco neste artigo, diferentemente de vários analistas e demais palpiteiros nas redes sociais não é apontar quem tem razão ou não nesse episódio dantesco (quem quiser isso é só acompanhar os diversos posts dessas pessoas, no antigo Twitter – hoje X – dá para achar aos montes), muito embora eu considere o Zelensky um ingrato que acha que o “Ocidente” tenha a obrigação de mandar bilhões e mais bilhões em recursos financeiros e militares, ainda que estes se revelem inúteis para reverter a invasão e ocupação russa de terras que eram, até então, o coração industrial e agrícola do país.

Também não estou aqui para dar eco à narrativa da guerra da “democracia ucraniana” contra a “tirania russa”, muito falada por essa mesma turma que citei no parágrafo anterior: segundo o Índice de Democracia da Economist Intelligence Unit [9] (ligada à revista The Economist, uma publicação insuspeitamente ocidentalista), a Ucrânia não é sequer uma democracia falha (nesse grupo, por exemplo, estão Brasil e EUA), quem dirá uma democracia plena (como, por exemplo, a Noruega), mas sim um regime híbrido (El Salvador, por exemplo está neste grupo), cujos indicadores [10] pioraram sob a presidência de Zelensky – e isso antes mesmo da guerra. Um exemplo dessa deterioração (apenas para mencionar um) é o banimento de canais de TV ligados à oposição [11] em 2021.

Já que mencionei El Salvador aqui – a propósito, um país que merece um estudo de caso, mas isso é tema para outro artigo – tanto os indicadores como a trajetória dos mesmos, sob a presidência de Nayib Bukele, são similares à Ucrânia, e nem por isso o líder salvadorenho é considerado “guerreiro da democracia”.

Feitas essas observações, vamos ao ponto mais importante deste artigo, independente de seu posicionamento sobre o conflito (a propósito, recomendo a leitura deste artigo [12] de Lorenzo Mill e Gabriel Vargas em A Gazeta) – seja Slava Ukraini [13], neutro ou Slava Rossiya [14]: os EUA não são um aliado confiável. E não, isso não se trata de uma novidade sob Trump, muito menos de um outlier [15] da política externa norte-americana. Zelensky, enquanto líder da Ucrânia, não foi o primeiro a ver seu país jogado aos leões pelas mudanças nos “ventos” da Casa Branca, e nada leva a crer que será o último.

Só no último meio século de história, diversos países passaram pelo mesmo dissabor: em 1975, o então Vietnã do Sul, que recebia apoio dos EUA para lutar contra os socialistas do Vietnã do Norte, foi deixado à própria sorte após os norte-americanos não cumprirem o acordado [16] nos chamados Acordos de Paz de Paris de 1973, o que culminou com o dramático episódio da “Queda de Saigon”, já em 1975.

O Afeganistão é outro caso notório: os EUA, sob o governo de Ronald Reagan, apoiaram rebeldes [17] mujahedins [18] para combater os soviéticos, e esses rebeldes foram o embrião do que viria a ser o Talibã, movimento fundamentalista islâmico que governaria de fato o país entre 1996 e 2001, quando foram derrubados por uma coalizão liderada pelos mesmos EUA por esta abrigar o grupo terrorista Al-Qaeda, liderado por Osama bin Laden e responsável pelos ataques de 11 de setembro de 2001.

Por sua vez, a República Islâmica do Afeganistão, estabelecida após a queda do Talibã, cairia já em 2021 com a ofensiva deste último – que atuara como insurgência – que, aproveitando o processo de retirada das tropas americanas [19] iniciado em 2020 (sob o primeiro governo de Donald Trump), tomou o controle do país rapidamente e praticamente sem resistência das forças leais ao então governo afegão no ano seguinte, com os EUA governados por Joe Biden. O episódio em questão, marcante pelas cenas desesperadoras de afegãos tentando fugir pelos trens de pouso dos aviões que deixaram Cabul, a capital do país, acabou acendendo as comparações com a “queda de Saigon”[20] em 1975, e trouxe enorme dor de cabeça para o então governo Biden [21].

E, pensando na América Latina, não poderia deixar passar batido a figura de Manuel Noriega [22], general panamenho que, a partir dos anos 1950, estabelecera relações com a CIA (Central Intelligence Agency) dos EUA, vendendo informações sobre o que ocorria no governo do Panamá para os norte-americanos, ajudando estes a alcançar seus interesses geopolíticos. Após tornar-se braço direito de Omar Torrijos, que governou o Panamá entre 1968 e 1981, assumiria o posto de ditador do país entre 1983 e 1989.

No entanto, os mesmos EUA que consideravam Noriega útil e permitiram sua ascensão ao poder foram os mesmos que, na virada de 1989 para 1990, derrubaram-no sob o pretexto de envolvimento com o narcotráfico e de reprimir brutalmente dissidentes políticos [23], e, com o agora ex-déspota derrubado e preso, o condenaram a 40 anos de prisão por tráfico de drogas, extorsão e lavagem de dinheiro, pena essa que foi posteriormente reduzida e que não chegou a ser totalmente cumprida, visto que Noriega faleceu em 2017, aos 83 anos, de câncer no cérebro.

Essa digressão com três exemplos notáveis apenas reforça a ideia de que, a despeito da forma mais descarada e sem cerimônias em que isso é conduzido sob Trump em relação a Zelensky, a prática de descarte de antigos aliados não é uma novidade sob o atual presidente, muito menos um “ponto fora da curva”, como disse antes de outra forma. É, em linhas gerais, a norma de longo prazo da política externa norte-americana. E isso deveria ser motivo de preocupação, tanto para as nossas elites (políticas, econômicas, intelectuais, etc.) como para os policymakers [24] que atuam no Itamaraty [25], independente de orientação ideológica.

Afinal de contas, qual o sentido de aprofundar relações com um país que, dado o cenário atual de polarização política, pode sofrer giros de centro e oitenta graus em sua política externa a cada quatro anos, sendo que apenas metade de cada ciclo pode coincidir com a orientação de nosso governo de ocasião? Como já mencionei em outro artigo [26] aqui, de nada adianta reclamar de interferência americana em eleições, por exemplo, enquanto se manifesta o desejo de se implementar uma base militar deles em nosso território, ampliando (ainda mais) as possibilidades de ingerência, sendo que nesse ínterim podemos ter uma completa virada da política externa deles.

O triste e trágico – ou tragicômico – exemplo de Zelensky deveria servir de alerta para o nosso país no sentido de que tanto esquerda como direita (se pensarmos nos dois polos do espectro político) deveriam ser menos deslumbrados quanto aos EUA, ainda mais no sentido de se firmar alianças. Não que esse alerta venha a ser considerado, infelizmente. Até a próxima.

[1] Formado em Engenharia de Produção, Especialista em Gestão Pública e servidor público.

[8] Neologismo referente às ações de Donald Trump.

[13] Viva Ucrânia, vitória da Ucrânia.

[14] Viva Rússia, vitória da Rússia.

[15] Aquele que se destaca pelo seu talento, esforço e dedicação utilizados para realizar alguma atividade.

[18] Mujahidin (مجاهدين ; também transliterado como mujāhidīn, mujahedin, mujaidim... Forma plural de mujahid (مجاهد ), do árabe مجاهدين (muǧāhidīn), "combatente" ou "alguém que se empenha na luta (jihad)", embora o termo seja frequentemente traduzido como "guerreiro santo". Em: https://www.wordreference.com/enpt/mujahedin

[24] Os formuladores e gestores de políticas públicas, normalmente ligados ao Poder Executivo.

[25] O Ministério das Relações Exteriores do Brasil (MRE), também conhecido como Itamaraty. Órgão do Poder Executivo, responsável pelo assessoramento do Presidente da República na formulação, no desempenho e no acompanhamento das relações do Brasil com outros países e organismos internacionais.

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