top of page

Segurança pública: os dados, os fatos e as narrativas

Sabemos muito bem como o tema da segurança pública, volta e meia, entra em discussão. Afinal de contas, ela – ou pior, a falta dela – tem sido um problema endêmico de nosso país, que se acostumou a conviver com a realidade de índices de violência que, em alguns casos, são comparáveis a nações em guerra. E isso a despeito da melhora, por exemplo, nos indicadores de homicídios ocorrida nos últimos cinco anos.

E a publicação da edição 2023 do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, elaborado todos os anos pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), uma organização não-governamental (ONG) bastante conhecida na área, movimentou mais uma vez o debate público sobre essa questão, que, nos últimos anos, tem se tornado refém da polarização política que grassa no país há pelo menos uma década – ainda retornarei a esse ponto mais adiante.

Dito isso e sem mais delongas, vamos aos dados: tivemos redução de 2,4% nas Mortes Violentas Intencionais (MVI) – indicador que agrega homicídios dolosos, lesões corporais seguidas de morte e mortes decorrentes de intervenções policiais – totalizando pouco mais de 47 mil vítimas, o menor valor em mais de uma década. Quando contabilizados apenas o primeiro tipo de MVI, a redução é um pouco menor, de 2,2%, contabilizando pouco menos de 40 mil vítimas.

Com isso, as taxas de MVI e de homicídios dolosos são, respectivamente, de 23,4 e 19,5 mortes por 100 mil habitantes. Se por um lado essa redução é uma boa notícia em si, por outro os dados em si indicam que ainda há um longo caminho pela frente para que o nosso país se aproxime do que entendemos por mundo civilizado nessa área: temos indicadores que, mesmo para padrões sul-americanos, nos colocam no “pódio” entre os mais violentos da região, perdendo apenas para a Colômbia e a Venezuela.

Quando estratificamos os dados, algumas informações que podemos inferir a partir desses dão uma fotografia mais apurada sobre a situação: as regiões Nordeste e Norte puxaram a queda nos índices de violência – apesar dos estados destas regiões, no geral, terem taxas acima da média nacional (e boa parte das cidades mais perigosas do país estão nessas regiões, sobretudo no NE). Na Amazônia Legal, a taxa de MVI é de 33,8 mortes/100 mil habitantes, 54% acima do restante do país, evidenciando um desafio maior para o Estado para enfrentar essa questão (a propósito, um entre vários para essa região).

Voltando a falar do desafio que ainda temos para trazer o Brasil a algo próximo do “mundo civilizado” nessa questão, cabe apresentar alguns dados comparativos para dar ideia desse grande desafio que temos pela frente: quando comparamos as taxas de homicídios dolosos dos estados brasileiros (vide Tabela 4 do Anuário) às dos estados norte-americanos, o estado de São Paulo (SP), considerado o “mais seguro”, seria apenas “meio de tabela” para os padrões de lá, comparável ao estado da Virgínia Ocidental. Santa Catarina, por sua vez, seria similar ao Arizona, e o Distrito Federal, à Carolina do Norte. O Espírito Santo, estado onde moro, seria mais violento que o Mississippi, e apenas menos que o Distrito de Columbia, onde fica Washington, a capital dos EUA.

Quando o parâmetro de comparação passa a ser os países europeus, a necessidade de melhorias fica ainda mais patente: São Paulo, o estado menos violento (ou “mais seguro”) da nossa federação, é mais violento que a Rússia, o país com maior taxa de homicídios do Velho Continente. Nem preciso falar dos estados mais violentos do Brasil, como Pernambuco, Bahia e Alagoas, estados campeões de homicídios dolosos em termos proporcionais, são comparáveis aos países da América Central ou à África do Sul, em ambos os casos locais onde níveis extremos de violência se tornaram endêmicos.

Cabe dizer que o mesmo anuário que apresenta uma boa notícia acerca da redução das mortes violentas (além dos roubos) apresenta notícias nada abonadoras acerca de outros crimes: 2022 fechou com recorde histórico em estupros – 74.930 vítimas (alta de 8,2% frente a 2021), sendo a esmagadora maioria estupros de vulnerável; tivemos alta de golpes, estelionato e fraude eletrônica, além de crescimento da violência contra crianças e adolescentes e violência doméstica. Isso só corrobora com a ideia de que precisamos remar bastante para que tenhamos, de fato, indicadores civilizados em nosso país.

Os fatos e as narrativas

Feitas essas observações sobre os dados – por sinal, bem resumidas, e recomendo que confiram o Anuário, cabe retornar a um ponto já antecipado na primeira parte deste artigo: o debate sobre a segurança pública tornou-se refém da polarização política que grassa no país há, pelo menos, dez anos. As esquerdas e direitas que hegemonizam o debate público tomaram posições que, na prática, interditam a formação de um consenso capaz de levar a uma solução para um problema tão sério e, como afirmei antes, endêmico no Brasil.

Por um lado, temos uma esquerda que, sob o pretexto de atacar as supostas causas estruturais da violência – pobreza, desigualdade e carência de serviços prestados pelo Estado – acaba sendo bastante leniente com os criminosos, por acreditarem que, como bolas de sinuca (parafraseando uma expressão que conheci nos livros de Theodore Dalrymple), eles são meros produtos das circunstâncias do meio em que vivem, ignorando que os mais pobres são as principais vítimas desses mesmos criminosos. Ao mesmo tempo, esta aponta para os perigos do aumento da comercialização legal de armas de fogo, ignorando que, neste meio-tempo em que isso ocorreu, os homicídios seguiram caindo.

Por outro, temos uma direita que, ainda que corretamente aponte esse trato da esquerda com os criminosos como problemático e defenda – de maneira igualmente correta – um endurecimento na legislação penal e um maior respaldo a ações policiais, acaba perdendo credibilidade quando, ao ocorrer claros excessos e abusos nestas últimas, acabam apoiando os agentes mesmo assim, sem prejuízo na defesa do porte (quase) irrestrito de armas como política de segurança pública, sendo que tal medida nunca foi pensada com este objetivo, mas sim pelo aspecto da legítima defesa – por sinal, outro ponto que precisa de melhor respaldo por parte de nossa legislação.

Não menos importante são alguns mitos que precisam ser quebrados para que tenhamos um debate minimamente razoável sobre um tema tão sério: por um lado, a esquerda invoca o argumento de que no Brasil se “prende em excesso”, visto que o nosso país tem uma das maiores populações carcerárias do mundo, ignorando o fato de que, quando a situação é posta em termos proporcionais, nossa taxa de encarceramento não está sequer entre as dez primeiras. Cabe ressaltar que o papel primário da prisão é remover do convívio com a sociedade aquele que, de alguma forma, representa uma ameaça, e a ressocialização (cabe ressaltar ainda que nem todos os presos estão

Por outro, a direita, ao defender o armamento do cidadão comum – e digo isso como alguém que é a favor de flexibilizar o porte de armas de fogo, removendo a atual discricionariedade prevista no Estatuto do Desarmamento (disposta na comprovação da “efetiva necessidade”) e substituindo-a por critérios impessoais e objetivos –, invoca, de maneira errônea, o argumento de que o povo rejeitou o desarmamento no referendo de 2005. O que foi rejeitado, de fato, foi o Art. 35 do referido Estatuto, que, na prática, criava uma reserva de mercado de armas para os casos previstos no Art. 6º, em sua esmagadora maioria agentes de segurança e defesa do poder público. A propósito, tal colocação é coerente com as mais recentes pesquisas de opinião, que apontam uma tendência à rejeição ao porte de armas como medida de segurança.

A propósito, isso também é reflexo das mudanças culturais que o Brasil teve nos últimos anos, em que a sociedade, outrora rural e com dificuldades logísticas de acesso das forças de segurança pública, urbanizou-se, mudando a percepção de muitos sobre o armamento. O próprio Estatuto do Desarmamento foi, ao mesmo tempo, fruto e potencializador dessa mudança, comportando-se como uma “pá de cal” no que restava na “cultura de armas” que, supostamente, tinha em nosso país. Sendo assim, qualquer medida que vise reverter isso terá que ser muito gradual e acompanhada de um processo educativo quanto à necessidade de responsabilidade quanto ao uso das armas.

Por isso mesmo que medidas como a flexibilização do porte de armas para CACs no governo anterior (e alvos do governo atual) mostraram-se não só inúteis, como também contraproducentes. Além de não atacar diretamente a questão legal – decretos não podem servir como drible à lei, a tentativa de se criar uma Second Amendment na canetada apenas ajudou a interditar a discussão sobre o tema, visto que importamos uma discussão que só faz sentido no contexto norte-americano (a propósito, diria que nem lá), ignorando particularidades do contexto sociocultural brasileiro.

A discussão sobre esse tema está longe de ser esgotada – e nem era meu objetivo fazer isso em um único artigo, mas acredito que apresentei meus “dois centavos” de contribuição para que o debate público esteja nos devidos pinos. Até a próxima.

Comments


Commenting has been turned off.
bottom of page