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Regulação das redes sociais: uma questão de necessidade e soberania

A última quinzena de abril – bem como a primeira de maio – tem sido marcada por uma calorosa discussão no debate público: o Projeto de Lei nº 2.630 (PL 2630), que pretende regular a atuação das redes sociais no Brasil. De um lado, defensores do projeto o apoiam como uma ferramenta para inibir crimes e/ou incitação a esses nas redes, com o diferencial de que as plataformas passam a ser responsabilizadas pelo conteúdo divulgado pelos seus usuários; do outro, críticos do projeto alegam que isso pode abrir um precedente para censura nas redes, além de outros pontos controversos como a obrigatoriedade de remuneração das empresas de mídia para conteúdos divulgados nas redes.

Outro aspecto não menos importante para se mencionar é o envolvimento ostensivo da imprensa tradicional, das big techs e do Judiciário no debate (se é que dá para chamar dessa forma), com expedientes no mínimo controversos para convencer os parlamentares pela aprovação ou não do projeto. O clima de polarização política instalado nos últimos anos também não ajuda muito a colocar a querela em termos racionais.

Antes de apresentar meu posicionamento sobre o tema – que, pelo título, já deve dar ideia de que sentido pretendo me colocar – cabem algumas observações: a primeira, é que regulação, via de regra, se enquadra no que normalmente é considerada como política de Estado, portanto independe do governo de ocasião em sua existência e necessidade (ainda que possa depender quanto aos meios e intensidade); a segunda, é que se trata de uma questão que terá de ser tratada cedo ou tarde (em 2021, na esteira da tentativa de golpe de estado nos EUA, escrevi em meu blog pessoal a respeito); a terceira, corolário da segunda, é que a omissão de setores do espectro político em pautar a discussão levará a mesma a ser pautada pelos demais atores envolvidos nos termos deles; a quarta, é que uma legislação nesse sentido precisa assegurar a soberania do Estado, enquanto agente promotor e mantenedor da ordem social e estabilidade institucional; a quinta, por fim, é que as grandes corporações desse setor, em nenhum momento, podem ser tratadas em pé de igualdade em relação aos usuários, portanto, é preciso que se pense em um “princípio de hipossuficiência” destes últimos.

Feitas essas observações, vamos aos pontos: as big techs, conforme disse em meu artigo de 2021, não são como uma quitanda da esquina, em que existe uma concorrência perfeita e que, caso esteja insatisfeito, basta trocar como se troca de rua. Cada vez maiores e mais poderosas, são cada vez mais próximas do que, em economia, se denomina monopólio natural, situação em uma única empresa pode ofertar um bem ou serviço a menor custo que duas ou mais, bem como o fato de que, apesar do custo de implementação ser elevado, o custo de fornecimento de unidades extras de um bem ou serviço é relativamente baixo.

Diversos setores da economia se comportam e são tratados dessa forma: abastecimento de água, energia elétrica, telecomunicações e fornecimento de gás, por exemplo. Mesmo quando tais setores são controlados por empresas privadas, seus parâmetros operacionais e contratuais são fortemente amarrados por força normativa, sendo as agências reguladoras a principal agente de padronização dos serviços prestados e – em tese – fiscalizadora de eventuais abusos das corporações.

Sendo assim, se considerarmos que as big techs oferece, cada uma delas, um mix de serviços diferente da outra, com o agravante de que estes não são totalmente intercambiáveis caso se escolha mudar (como ocorre nas telecomunicações), o que as torna, na prática, serviços de característica similar ao fornecimento de água, energia elétrica e gás, e que, como disse antes, seus custos de implementação (no caso, de infraestrutura e pessoal de TI) são altos – porém os custos operacionais de uma unidade extra de serviço (um perfil novo numa rede, por exemplo) são baixos –, é perfeitamente justificável enquadrá-la como um arranjo de monopólio natural e regulá-la dessa maneira.

Dito isso, é preciso ponderar quais parâmetros seriam razoáveis de se considerar em uma regulação das redes sociais: o primeiro, é que os procedimentos destas em relação aos seus usuários – sobretudo quanto à moderação de conteúdo, uma vez que se pretende responsabilizar as plataformas – precisam ser fundamentados. Neste aspecto, a ideia de deixar as big techs sob a supervisão de um órgão regulador (infelizmente abandonada pelo relator do PL 2630, o deputado Orlando Silva) é bem-vinda, visto que muitas das decisões que hoje só são tomadas por força judicial passam ao âmbito administrativo, que é mais ágil. Todas as decisões de moderação de contas e conteúdos postados seriam melhor fundamentadas, diminuindo o arbítrio das redes, como já ocorreu em episódios num passado recente (no Brasil, em 2018, diversas contas ligadas a membros do Movimento Brasil Livre – MBL foram banidas das redes sociais sob a alegação de divulgarem notícias falsas).

Uma melhoria nesse ponto seria um dispositivo que assegure a transparência das redes sociais em prestar contas aos usuários sobre a moderação de seu conteúdo postado – bem como do próprio perfil. Toda suspensão ou mesmo remoção de posts ou perfis deveria ser justificada, especificando o item violado dos termos de uso e/ou da legislação. Isso ajudaria a respaldar as próprias redes, bem como os usuários, que, em caso de prejuízo, poderiam recorrer administrativa e/ou judicialmente.

O segundo parâmetro a se considerar seria a própria definição de notícia falsa (mais conhecida como fake news), um dos alvos do projeto de lei. Curiosamente, o texto original trata desse ponto apenas no capítulo que trata do Conselho de Transparência e Responsabilidade da Internet, removido na versão final enviada ao Plenário da Câmara, mencionando duas vezes a palavra “desinformação”. Tal como disse no parâmetro anterior, é preciso não só definir quando um determinado conteúdo pode ser considerado falso e/ou desinformativo, mas como isso pode ser atestado.

As agências de checagem de fatos, que surgiram a partir do início do debate público sobre o efeito das notícias falsas, podem exercer um papel balizador, auxiliando tanto as redes sociais como o Estado nesse sentido. Contudo, é preciso também regular a atividade destas, de forma a evitar conflitos de interesse entre elas e a imprensa tradicional e assegurar a independência de seu trabalho.

Tais agências deveriam ser integradas por profissionais que tenham dedicação exclusiva, proibidos por lei de atuarem para qualquer outro meio de comunicação durante seu período de atuação. Uma possibilidade ainda mais restritiva seria estabelecer período de “quarentena” tanto no caso de contratação de profissionais por tais agências como para a contratação de profissionais oriundos estas por meios de comunicação, reduzindo ainda mais a margem para conflitos de interesse.

Além disso, estas agências classificariam tanto conteúdos como os próprios portais de notícias avaliados com conceitos similares às “notas de crédito” dadas pelas agências de classificação de risco. Isso ajudaria uma rede social a tomar a decisão de moderar um conteúdo considerado suspeito de ser “desinformativo”, assim como o Estado nesse sentido.

Voltando ao ponto da definição propriamente dita de “notícia falsa”, a ideia é amarrá-la de forma a atingir não o “tio ou tia do zap” que, enganada e/ou sob viés de confirmação, compartilha tal conteúdo, mas sim formadores de opinião no meio digital e/ou portais de mídia que, tendo conhecimento e recursos para apurar os fatos, opta deliberadamente pela falsificação.

O terceiro parâmetro, por fim, tem que ver com a soberania do Estado no ambiente digital, no sentido de tomar medidas que assegurem a ordem social e estabilidade institucional, princípios que, por razões um tanto óbvias, sustentam até mesmo a liberdade de expressão em que tanto a neodireita como setores liberais se queixam de que “está ameaçada” (o mesmo tom apocalíptico foi adotado na época em que o Marco Civil da Internet foi discutido, diga-se de passagem). Sem quaisquer mecanismos que facilitem responsabilizar e neutralizar usuários e/ou plataformas que permitem a disseminação de conteúdo criminoso, essa liberdade se resume ao bel-prazer de pessoas mal-intencionadas, ao custo social da comunidade.

Isso fica evidente quando plataformas como o Google e o Telegram – ambas estrangeiras e a primeira delas com laços com o governo norte-americano – militam ativamente para impedir o projeto, interferindo em uma discussão que cabe aos representantes do Estado brasileiro chegar a um denominador comum. O que está sendo decidido, no final das contas, é se grandes corporações (estrangeiras, em sua esmagadora maioria) vão ter poder para ditar uma política pública ou se o Estado, enquanto legítimo representante da sociedade e de seus interesses difusos, exercerá, de fato, esse papel.

Evidentemente, acredito que o PL 2630 pode – e merece – ser aperfeiçoado. Como abordei antes, o projeto apresenta lacunas que, se resolvidas, poderia torná-lo mais eficiente e eficaz em seu objetivo. Contudo, interditar o debate a pretexto de uma pretensa “liberdade de expressão” é enfraquecer o papel do Estado no sentido de assegurar o interesse público (cabe lembrar que, a meu ver, tais liberdades são questão de interesse particular). Sendo assim, enxergo como bem-vinda a iniciativa de se regular as redes sociais. Até a próxima.

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