top of page

Reflexões sobre o “imposto do pecado”

Marcos Jr. [1]

Na última semana de abril um dos fatos que movimentaram o noticiário econômico foi a entrega do governo ao Congresso de um dos projetos de lei para regulamentar a reforma tributária [2], uma pauta que se arrastava por pelo menos três décadas e que, no ano passado, uma emenda à Constituição que tratava do tema foi aprovada e promulgada pelo Legislativo.

Entre os itens previstos nessa primeira etapa de regulamentação está a adoção do “imposto do pecado”, uma taxação maior para bens e serviços considerados prejudiciais à saúde e ao meio ambiente em relação ao restante da economia. Na proposta do governo [3], cigarros, bebidas alcoólicas, bebidas açucaradas, carros e petróleo entraram na lista de itens que, caso aprovada, teriam de pagar mais impostos.

Tão logo essa proposta foi revelada à imprensa e um debate sobre o escopo da proposta tomou conta desta e das mídias sociais. Uma das falas que “engrossaram o caldo” da discussão foi a do jornalista André Trigueiro que apoiou a proposta, mas, lamentou que alimentos ultraprocessados ficaram de fora da sobretaxação [4], despertando diversas críticas de que tal medida, se implementada, tornaria ainda mais difícil a alimentação das pessoas mais pobres, o que, de fato vem ocorrendo nos últimos anos [5].

“Imposto do pecado” enquanto imposto pigouviano

O que a imprensa popularizou como “imposto do pecado” (também conhecido como sin tax) é o que na economia é mais conhecido como imposto pigouviano [6], taxa pigouviana ou imposto de Pigou, que recebe este nome por ter sido descrito por Arthur Cecil Pigou (1877-1959), economista britânico formado pela Universidade de Cambridge. O objetivo principal deste instrumento de tributação é erradicar – ou reduzir ao mínimo possível – as externalidades negativas decorrentes da produção e/ou consumo de bens e serviços, como por exemplo, impactos negativos à saúde e ao meio ambiente.

Com a elevação da tributação sobre tais bens e serviços, estes ficariam mais caros e seus consumidores, por sua vez, demandariam uma menor quantidade deles, ao menos em tese. Evidente que essa ideia – da qual o “imposto do pecado” é derivado, não está isenta de contestações: sua aplicação pode ser simplesmente ignorada pelo simples fato de que empresas e consumidores podem assumir pagar mais caro, dificuldades para se mensurar a real causa dos prejuízos aos cidadão, necessidade de custo recíproco (fazendo com que produtores e consumidores assumam suas devidas parcelas dessa tributação) e o óbvio, que o governo pode usar isso como pretexto para realizar uma tributação abusiva.

Agora sim, às reflexões...

Breve explicação feita (inclusive do contexto histórico), minhas reflexões – com o posicionamento deste que vos escreve – sobre o tema podem ser divididas em quatro itens: a) acredito na necessidade do “imposto do pecado” a fim de desestimular certos comportamentos de produção e/ou consumo; b) acredito que os ultraprocessados deveriam ser mais tributados; c) acredito que em certos casos a tributação não pode ser o principal – e muito menos o único – instrumento de política pública, e; d) diversos outros itens ficaram de fora dessa tributação seletiva, sendo que precisariam muito mais estar presentes.

O primeiro item, premissa-chave do meu posicionamento é que certos comportamentos de produção e/ou consumo, caso não seja mais viável proibi-los, devem ser pesadamente regulamentados e tributados de forma a ter um custo que desestimule a prática frente a outras atividades econômicas. Por exemplo, em um cenário que a proibição da venda e consumo da maconha não seja mais viável, o ideal seria, além de uma pesada taxação, regulamentações que restrinjam o consumo e a publicidade de tal droga. Note que a taxação, apesar de ser uma proposição importante nessa hipótese, não é o único instrumento (voltarei nesse ponto mais adiante).

O segundo item, que talvez possa gerar polêmica tal como gerou por conta da fala de Trigueiro defendendo a taxação de ultraprocessados [7] é que acredito que estes, em algum momento, devem ser taxados. São alimentos no geral de baixíssimo valor nutricional, com altos teores de açúcar adicionado, gordura saturada e/ou sódio (além de numerosos aditivos), e diversos estudos apontam (um deles, uma recente meta análise sobre o tema, pode ser conferido aqui [8]) – fato público e notório – a relação entre tais alimentos e diversas doenças como: doenças cardíacas, diabetes, obesidade e câncer.

O fato de as classes mais pobres consumirem cada vez mais [9] esse tipo de alimento torna o quadro mais preocupante por múltiplas razões, sobretudo pelo fato de que por não terem acesso a serviços particulares ou plano de saúde, caso venham a desenvolver essas doenças antes mencionadas (bem como outras), dependerão única e exclusivamente do Sistema Único de Saúde (SUS) para tratar-se, e, para além dos gargalos e deficiências seculares desse serviço haverá custos crescentes para o tratamento de tais doenças, sem prejuízo de que essas pessoas doentes poderão não estar em condições – temporária ou permanentemente – de trazer o sustento à família e/ou movimentar à economia.

No entanto, lidar com isso, tendo em vista o contexto que levou as classes mais pobres a recorrerem aos ultraprocessados como alternativa de alimentação é o que me leva ao terceiro item. No caso em questão, uma combinação entre outros fatores de escalada recente dos preços dos alimentos in natura, somada à rotina acelerada dos centros urbanos, à precarização do trabalho de boa parte desse grupo e ao baixo custo em termos absolutos dos ultraprocessados, levaram estes a se tornarem uma opção para o “pão de cada dia”. Em não exatamente raros casos o que temos é um dilema entre o ruim e o pior: um alimento sabidamente ruim em termos nutricionais e de saúde, ou simplesmente ficar de barriga vazia.

Trata-se de um quadro que, diferente de alguém que compra uma bebida alcoólica para o final de semana ou um abastado que compra um superesportivo para impressionar outras pessoas durante à noite, o cidadão mais pobre não coloca um biscoito, uma bandeja de mortadela ou um pacote de salsicha ou nuggets por escolha, mas não raras vezes, por falta dela. Diante de uma situação de renda cada vez mais apertada e de uma rotina cujo tempo nos dias de semana que não seja de trabalho e deslocamento, ou mesmo sobra apenas pouco mais que o necessário para o sono, a escolha por alimentos que não só sejam de baixo custo em termos absolutos – em relativos isso é discutível, por exemplo 1 (um) kg (quilograma) de nuggets ou 1 kg de macarrão instantâneo não é mais barato que 1 (um) kg (quilograma) de peito de frango ou 1 kg de espaguete – mas também porque poupa bastante tempo de preparo.

Se por um lado não podemos normalizar ou mesmo romantizar uma dieta prejudicial à saúde – até porque é de interesse da indústria alimentícia manter o status quo de ocasião, visto que esta, desde cedo [10], busca acostumar seus consumidores a alimentos de qualidade nutricional, para dizer o mínimo, duvidosa. Contudo, sobretaxar ultraprocessados enquanto principal – e, caso aplicado neste momento, seria o único – instrumento de política pública para o enfrentamento a este quadro o que seria a pior medida possível. Não atacaria as causas do problema e ajudaria a precarizar ainda mais a alimentação dos mais pobres a quem jornalistas como André Trigueiro alega proteger. Na prática, seria um “imposto sobre a pobreza”.

Não pretendo aprofundar muito no conjunto de instrumentos de política pública para este caso específico, mas deixo como linhas gerais que um possível caminho para uma alimentação mais saudável e com menor participação de ultraprocessados passa pelas seguintes medidas (entre outras): ampliar a oferta de alimentos in natura e minimamente processados de forma a torná-los mais baratos – nos últimos anos, por exemplo, a área plantada de arroz e feijão, até então base de nossas refeições, sofreu sucessivas reduções [11]; retomar a política de estoques reguladores, prometida pelo atual governo mas até agora não cumprida (e sem perspectiva de prazo para isso); fortalecer e aprimorar políticas públicas já existentes como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA [12]), articulando com estados e municípios que estes cheguem de maneira acessível aos consumidores, bem como a dos Restaurantes Populares; modular as políticas habitacionais de forma a minimizar tempo de deslocamento entre a residência e o local de trabalho; reduzir a jornada de trabalho das atuais 44h semanais para 40h; além de promover medidas que impulsionem a geração de emprego e renda.

Com ao menos parte dessas medidas tomadas e surtindo efeito, podemos de fato pensar na sobretaxação de ultraprocessados como um instrumento auxiliar nesse processo. Mas, como dito antes, em casos como este o “imposto do pecado” não pode ser o principal e muito menos o único meio para desestimular comportamentos prejudiciais à saúde, ao meio ambiente, à família e/ou à sociedade.

Feitas essas colocações, vamos ao quarto e último item: existem diversos produtos e serviços que mereceriam ser incluídos no “imposto do pecado”, talvez até mais do que os relacionados na proposta do governo. Um exemplo disso são as apostas esportivas – mais conhecidas como bets, uma moda que tomou conta do país desde o início desta década, possui um mercado milionário e tem ampla publicidade, além de patrocinar a esmagadora maioria dos principais times brasileiros e diversas competições e que, tal como os alimentos ultraprocessados que o Trigueiro tanto lamentou a não incidência dessa tributação seletiva, tem atraído cada vez mais pessoas das classes mais pobres [13].

Só que, diferentemente dos ultraprocessados, que ao menos servem como alternativa (mesmo que ruim) de uma necessidade básica, as apostas – e poderíamos incluir outros jogos de azar ofertados nessas mesmas plataformas, como o tigrinho [14] – são totalmente supérfluas, não movimentam a economia real (inclusive drenam recursos da mesma, haja vista que pessoas deixam de comprar comida para jogar) e são altamente viciantes, prejudicando não só quem aposta, mas também as pessoas que estão ao seu redor. Se a ideia do “imposto do pecado” é desestimular atividades prejudiciais, apostas e jogos de azar em geral deveriam ser sobretaxadas, e de forma até mais pesada que os itens propostos pelo governo para a tributação seletiva.

Evidente que a discussão sobre o tema não se encerra por aqui, mas creio que apresentei algumas linhas gerais do que deveria ser o “imposto do pecado” como um – dos vários – instrumentos de política pública. Até a próxima.

[1] Formado em Engenharia de Produção, Especialista em Gestão Pública e servidor público.

Comments


Commenting has been turned off.
bottom of page