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Privatização: o deus que falhou

São Paulo, sexta-feira, 03 de novembro de 2023. Uma violenta tempestade se abate sobre a capital (e muitas outras cidades paulistas), trazendo destruição e, lamentavelmente, mortes. Para além disso – mas não menos importante, como irão notar, – vários bairros da maior metrópole brasileira ficam sem energia elétrica por horas, que, em algumas localidades, se arrastam por vários dias, ocasionando prejuízos no comércio local e alimentos perecíveis estragados, precisando serem jogados fora, sem falar outros transtornos.

Diante do prolongamento do caos, a Enel, concessionária de luz que opera na capital paulista, empurra a culpa do apagão após o temporal na prefeitura, por não ter feito sua parte em relação às árvores – de fato, muito dessa falta de energia se deve à queda delas, embora não seja o suficiente para justificar uma demora que levou quase uma semana em algumas regiões da cidade. A prefeitura, por sua vez, empurra a responsabilidade para a Enel – não que não tenha razão, mas faz-se de sonsa para esquivar-se de sua responsabilidade (que não se resume às árvores).

O governo estadual, liderado por Tarcísio Gomes de Freitas (Republicanos), o forasteiro carioca que, com a bênção de Bolsonaro e aproveitando-se do sólido antipetismo paulista (ainda que na capital o petismo esteja, relativamente, vivo e forte), se elegeu como governador do estado mais populoso do país, fica silente nos primeiros dias após a catástrofe. Tudo isso, para, cerca de 72 horas (opa!) após a catástrofe, usar o ocorrido envolvendo a Enel para... Defender a privatização da Sabesp, a estatal responsável pelo abastecimento de água em mais da metade dos municípios paulistas. Parafraseando Roberto Carlos, “daqui pra frente, tudo vai ser diferente”.

Semanas mais tarde, com a poeira do ocorrido já baixa, o governador de São Paulo voltou a insistir na defesa da privatização da companhia, desta vez alegando que, caso esta ocorra, haverá redução das tarifas cobradas ao consumidor. Se formos usar como parâmetro as privatizações de refinarias da Petrobras ocorridas no governo de seu antigo patrão – cujo argumento, àquela época, era que a “maior eficiência” e a “livre competição” promovidos pelo setor privado iriam reduzir os preços, nada leva a crer que isso, de fato, acontecerá.

Mas, já que falei de crença, a defesa das privatizações no Brasil é, basicamente, uma questão de fé por parte de seus adeptos. Pouco importa se as evidências de que o prometido, como mostrei no parágrafo anterior, apontam para o contrário – outro exemplo disso vocês podem conferir aqui. Pouco importa se, em muitos países (inclusive e sobretudo os desenvolvidos), ao contrário daqui, há uma tendência de retomada do controle estatal do saneamento, por exemplo. Pouco importa se o discurso de “livre concorrência”, por razões óbvias aprendidas em qualquer manual de microeconomia, não se aplica a muitos dos setores – total ou parcialmente – privatizados, visto que estes se organizam na forma de oligopólios ou mesmo monopólios.

Aliás, setores como o elétrico, de abastecimento de água, de gás, telecomunicações (em algumas localidades) e mesmo redes sociais (como comentei neste artigo) estão entre os casos que, na microeconomia, se convenciona chamar de “monopólios naturais”, uma situação em uma única empresa pode ofertar um bem ou serviço a menor custo que duas ou mais, e, a despeito de o custo de implementação ser elevado, o custo de fornecimento de unidades extras de um bem ou serviço é relativamente baixo.

Nestes casos, não é incomum que o Estado crie empresas para gerir o fornecimento destes serviços e, mesmo no caso da operação deste ser feita por empresas privadas, seus parâmetros operacionais e contratuais são fortemente amarrados por força normativa, sendo as agências reguladoras a principal agente de padronização dos serviços prestados e fiscalizadora de eventuais abusos das corporações. Ao menos deveria ser assim (o que, diante das evidências acumuladas, dá para se ter dúvidas).

Para além das contradições já apontadas entre discurso e realidade acerca das privatizações como de fato ocorrem em nosso país, um outro aspecto – não menos paradoxal é que, em diversos casos, muitas das empresas que adquirem essas empresas concessionárias de serviços ou ativos que, outrora, estiveram sob controle do Estado, são, parcial ou mesmo totalmente, controladas por Estados de outros países. A Enel, mencionada antes, tem cerca de 24% de suas ações controladas diretamente pelo governo da Itália – além de outros 2% nas mãos do Norges Bank Investment Management (banco estatal da Noruega que gere o fundo de pensões de lá), 1,5% nas mãos do GIC Pte Ltd., nada mais nada menos que o fundo soberano de Singapura, e 0,5% cada nas mãos do fundo de pensão governamental do Japão e da caixa de previdência dos advogados da Itália (gerida pelo Estado), respectivamente.

Outro exemplo bem curioso é a Flughafen Zürich AG, atual administradora dos concedidos aeroportos de Vitória (capital do estado do ES, onde moro), de Macaé (RJ) e de Florianópolis (SC). Entre os maiores acionistas, cerca de 1/3 das ações dessa companhia estão nas mãos do cantão (o equivalente ao estado no Brasil) de Zurique, outros 5% nas mãos da cidade de Zurique, sem falar em 2% nas mãos do mesmo banco estatal norueguês que tem ações na Enel.

Outro exemplo é a EDP, concessionária de energia que atua no ES, onde moro. Cerca de 20% das ações estão nas mãos da Companhia das Três Gargantas, uma estatal de eletricidade da China. Outros 6%, aproximadamente, estão sob controle do fundo estatal de pensões do Canadá e outros 3%, também sob controle daquele mesmo banco estatal norueguês.

Mas creio que, dos exemplos que irei mencionar neste artigo (entre vários outros), o mais gritante é o da CPFL, companhia de energia que atua no interior paulista. Nada mais nada menos que quase 84% das ações da empresa estão hoje nas mãos da State Grid, uma estatal de eletricidade da China. Isso mesmo: o controle acionário de uma empresa provedora de um serviço estratégico como energia elétrica é, digamos, estatal... Só que de outro país.

Então quer dizer que muitos países – inclusive os de economias ditas “liberais” – não só os Estados mantêm algum grau de controle (mesmo que minoritário) em diversas atividades do setor produtivo como ainda adquirem fatias – quando não o controle majoritário ou mesmo total – de empresas ou ativos outrora estatais de países emergentes? Sim, isso mesmo. O dito “anticomunista” defensor ferrenho de privatizações, por miopia, ignorância ou mesmo má fé, não vai contar a você que algumas dessas empresas ou ativos irão, por exemplo, acabar nas mãos da China, do “comunista” (aspas, muitas aspas) Xi Jinping. A propósito, temos que tirar o chapéu para os chineses, uma vez que, quando resolvem entrar no jogo do capitalismo real, jogam de terno...

Voltemos a falar da Sabesp, estatal paulista de saneamento que Tarcísio quer por que quer privatizar. Até mesmo os bolsonaristas da Assembleia Legislativa de SP, que até o ano passado eram defensores fervorosos de vender tudo, passaram a se opor ao projeto de seu (em tese) aliado. Sinais dos tempos?

É claro que, após essa exposição, alguns queiram perguntar se defendo que o Estado deva ser dono de tudo ou algo parecido. E a resposta é, evidentemente, não. A propósito, como já apresentei em diversos artigos neste espaço, a dicotomia entre estado e mercado, endossada por setores do liberalismo brasileiro, é artificial. O que precisamos é de mais estado e mais mercado, trabalhando a uma voz em benefício da sociedade.

Aliás, não sou, por princípio, opositor de privatizações e/ou concessões – que, basicamente, são uma forma de privatização, quando não se aplica a venda do ativo em si, mas sim o direito de uso dele por um determinado tempo, condicionado a melhorias e modernização do mesmo, para efeito de prestação de serviços à população. Acredito que, em certas circunstâncias e certos setores, pode ser uma medida válida, no sentido de o Estado dedicar seu orçamento e sua musculatura às principais necessidades da sociedade. Contudo, antes de uma defesa fideísta disso (como mencionei antes), é preciso que se faça alguns questionamentos e/ou ponderações.

Primeiro, quanto à estrutura do mercado àquela atividade: trata-se de um setor permeável à livre concorrência ou se trata de um oligopólio ou mesmo monopólio, quiçá um monopólio natural? Cabe lembrar que uma empresa privada tem como objetivo primário o lucro, diferente de uma estatal, que, mesmo que também tenha esse objetivo, precisa conciliá-lo com outros objetivos estratégicos de Estado, bem como o interesse público (muitas vezes dando prioridade a estes últimos em detrimento do primeiro). É razoável, por exemplo, entregar um monopólio natural a uma empresa cujo objetivo seja, tão somente, fechar a Demonstração do Resultado do Exercício (DRE) no azul, ainda que nas costas do consumidor ou dos colaboradores?

Segundo, quanto ao controle das empresas ou ativos: se a privatização ou a concessão é necessária e/ou inevitável, devemos, sob a lógica de que “capital se faz em casa”, buscar que esses estejam, em sua esmagadora maioria, em mãos de empresas nacionais, inclusive com mecanismos legais que limitem ou mesmo vetem a participação de capital estrangeiro em empresas ou ativos de setores-chave para o país. A propósito, países vistos como “paraíso” do livre mercado, como os EUA, fazem isso inclusive para setores controlados pela iniciativa privada: o exemplo do veto norte-americano para venda de chips de inteligência artificial (IA) à China, afetando diretamente grandes players do setor, como Nvidia, AMD e Intel, não me deixa mentir. Do contrário, nosso país servirá como mera “galinha dos ovos de ouro” para estrangeiros, cujos interesses, salvo acidentalmente, não estarão alinhados aos nossos.

Terceiro, mas não menos importante, está o aspecto regulatório: o modelo de privatização ou concessão adotado, de fato, considera e preserva o interesse nacional e/ou o interesse público? Afinal de contas, essa é a razão de ser do Estado que, de agente direto, passará a ser agente regulador. Do contrário, teremos bizarrices como a proposta de uma “contribuição” por parte dos moradores de bairros interessados em enterrar a fiação, defendida por Ricardo Nunes (MDB), prefeito da capital paulista – medida que deveria constar entre as obrigações da Enel. Ou ainda, pensando em um exemplo próximo, ao da concessão da BR-101 aqui no ES, em que, dez anos depois, menos de 10% da rodovia foi duplicada e, para evitar uma nova – e demorada – relicitação do trecho, acordou-se uma vergonhosa redução das obrigações para a Eco 101, concessionária que administra a via. Linhares e São Mateus, dois dos principais centros urbanos do norte capixaba, ficarão de fora do trecho duplicado.

Em suma, não custa nada (man)ter um certo grau de ceticismo em relação a fórmulas prontas do tipo “privatiza que melhora”, ainda mais quando as evidências mostram que a realidade não é tão rósea assim quanto parece. Até a próxima.



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