Paquistão e o terrorismo de Estado
- Renzo Souza
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Renzo Souza Santos[1]

Nessa última semana de abril vimos uma série de ataques, um ataque terrorista no Vale de Baisaran, perto de Pahalgam, no distrito de Anantnag, em Jammu e Caxemira, regiões administradas pela Índia. Esta ação matou pelo menos 26 turistas e feriu mais de 20 outros. O ataque, o mais mortal do seu tipo na Índia desde os ataques de Mumbai em 2008 teve como alvo específico turistas hindus e teria como objetivo resistir às mudanças demográficas no Vale da Caxemira.
Os perpetradores dos atentados talvez sejam desconhecidos paras os leitores ocidentais, mas não para o analista geopolítico. A Frente de Resistência, um ramo do grupo terrorista do LeT[2], com sede no Paquistão, designado pela ONU como terrorista, reivindicou os ataques.
Mas o que diabos são esses caras? Bom, partindo de algumas boas pesquisas encontramos o trabalho da professora de ciência politica Christine Fair na sua obra "Em suas próprias palavras: compreendendo o Lashkar-e-Tayyaba" ela nos diz que esses grupos para além de proxys do Paquistão, são basicamente um braço direito armado do país. Ou seja, o Paquistão há muito utiliza militantes islâmicos, bem como não islâmicos, como parte de sua política externa e estratégia de segurança nacional.
Primeiro, esses militantes são geralmente eficazes para garantir os objetivos imediatos do Paquistão. Por exemplo, no Afeganistão, eles têm sido empregados de forma disruptiva para garantir que o país não se torne uma base segura para a Índia.
Segundo, já na Índia, eles têm sido empregados para imobilizar centenas de milhares de forças de segurança na Caxemira, no Punjab e em outros lugares. Na Caxemira e em toda a Índia, o Paquistão usa esses militantes para aumentar as apostas em prol da atenção e intervenção internacionais. Com a nuclearização explícita do subcontinente em 1998, observadores internacionais opinam rotineiramente que tais ataques terroristas são o que pode precipitar uma guerra indo paquistanesa, com o risco inerente de escalada nuclear . Assim, esses grupos promovem a agenda perene do Paquistão de manter viva a "disputa da Caxemira".
Por outro lado, é relativamente fácil atiçar a agitação na Caxemira administrada pela Índia e provocar reações exageradas indianas, o que inevitavelmente resulta em mortes na Caxemira, abusos de direitos humanos e até mesmo violações chocantes do direito internacional humanitário. Por sua vez, o Paquistão capitaliza essas reações exageradas indianas, previsivelmente cansativas, com sua teatralidade apurada para destacar essas atrocidades reais e exageradas na Caxemira em fóruns internacionais como as Nações Unidas. Os excessos indianos alienam ainda mais os caxemires sob sua governança, que o Paquistão explora de forma cínica e cíclica.
Terceiro, é quase impossível para a Índia ou qualquer outro país obrigar o Paquistão a cessar o uso desses grupos permanentemente, e é impossível detectar e interromper todos os terroristas que entram na Índia.
A propósito, usar representantes militantes para garantir esses objetivos é relativamente barato quando medido em custos econômicos diretos. ainda que seja impossível saber com certeza quanto apoio financeiro o Estado paquistanês fornece a grupos como LeT, Kambere, JuD[3] e outros. Estima-se que o orçamento anual de operação do LeT seja de cerca de US$ 50 milhões, dos quais cerca de US$ 5,2 milhões são dedicados a operações militares. É improvável que o estado tenha que fornecer os US$ 50 milhões completos porque a organização tem uma enorme capacidade de arrecadação de fundos por meio de suas solicitações de caridade nacionais e estrangeiras, das vendas de suas numerosas publicações e de sua coleta anual de peles de animais para sacrifício, entre outros empreendimentos lucrativos.
No entanto, se considerarmos que estes 50 milhões de dólares são uma quantia insignificante em comparação com o orçamento anual de defesa do Paquistão, de 18% ou mais do PIB algo em torno de 10 Bilhões de dólares. Este cálculo fácil exclui, naturalmente, os custos de oportunidade que esta estratégia, enraizada no hiperconflito perpétuo contra os indianos afeta o crescimento econômico do Estado e sua capacidade de investir nos recursos humanos e de desenvolvimento do país. Sem contar que o Paquistão pode usar esses representantes em vez de suas próprias forças, o que é uma opção mais arriscada em termos políticos, diplomáticos, militares e econômicos.
Grupos como LeT podem conduzir ataques sofisticados contra alvos difíceis e fáceis, a sua tomada de ação e estrutura é no mínimo diferente de qualquer outro grupo. De acordo com dados do Banco de Dados de Terrorismo Global da Universidade de Maryland, o Lashkar conduziu 205 ataques entre 1º de abril de 1999 e 19 de dezembro de 2016, deixando pelo menos 1191 mortos e 2411 feridos. Em contraste, antes dessa onda de violência bem coordenada no sul de Mumbai, pouquíssimas pessoas além da Índia ou do Paquistão tinham ouvido falar do LeT. Faltava-lhe o reconhecimento de marca que a Al-Qaeda desfrutava na época ou que o Estado Islâmico desfruta agora.
Isso era verdade, mesmo que o LeT tivesse se tornado há muito tempo o representante mais favorecido do Estado paquistanês para conduzir operações terroristas na Caxemira administrada pela Índia e em outras partes da Índia, em um esforço para obrigar a Índia a abrir mão do controle daquela parte de Jammu e Caxemira que controla. Até os ataques de Mumbai, autoridades americanas em fóruns relacionados ao terrorismo e à inteligência viam a organização como um problema, em grande parte, da Índia e, consequentemente avaliavam que ela representava um dano mínimo aos interesses dos EUA no Sul da Ásia ou além. Essa indiferença sempre foi eequivocada. Foi nesse processo que o LeT desenvolveu uma vasta infraestrutura para arrecadar fundos, recrutar e cultivar apoio político na América do Norte, Europa, Golfo e Sudeste Asiático. Os ataques de Mumbai em 2008 foram um rude despertar que deixou as autoridades americanas de sua sonolência por vários motivos.
Em primeiro lugar, este ataque durou dias, em vez de horas, como havia acontecido anteriormente com os ataques na Índia. É certo que isso teve tanto a ver com a inépcia indiana em responder ao ataque quanto com a própria competência do LeT.
Em segundo lugar, o cerco de vários dias foi coberto, minuto a minuto, pela mídia internacional devido à explosão de veículos de mídia privados na Índia e suas conexões com veículos internacionais como a CNN. Para o público americano, o ataque ocorreu durante o longo fim de semana de Ação de Graças, quando a audiência televisiva é alta. Em terceiro lugar, ao contrário dos ataques anteriores do LeT na Índia, este teve como alvo estrangeiros, incluindo americanos e israelenses.
A estratégia do grupo é total manipulação e controle do Estado Paquistanês. Taticamente o grupo adota duas posições ambíguas e até curiosas. O LeT/JuD se opõe veementemente à Al-Qaeda, ao Estado Islâmico e aos vários grupos militantes Deobandi que devastam o estado paquistanês e seus cidadãos, pois se opõe vigorosamente à violência no Paquistão. Com tal postura coloca o LeT/JuD em desacordo com outras organizações salafistas e Deobandi no Paquistão que propõem a doutrina do takfiri (excomunhão e, frequentemente, assassinato) para muçulmanos que se "comportam mal" por não viverem suas vidas como essas organizações exigem e esperam, e para os líderes muçulmanos que não impõem a sharia quando têm a oportunidade de fazê-lo.
O LeT/JuD não apenas argumenta contra a violência contra outros muçulmanos, como também adota a mesma postura contra as minorias religiosas do Paquistão, o que claramente produz um paradoxo surpreendente. O LeT denuncia os hindus e os cristãos fora do Paquistão como os piores politeístas e objectos dignos da jihad militarizada, dentro do Paquistão defende a sua conversão através da compaixão, da pregação e do proselitismo. O LeT é um dos parceiros mais importantes do Estado para o ajudar a gerir as consequências da sua política de longo prazo usando de militantes islâmicos como representantes do Estado. Isso explica em grande medida o apoio agressivo e inflexível do Paquistão ao LeT, tanto no país quanto no exterior, incluindo o lançamento pela organização de um partido político em agosto de 2017 para disputar as eleições gerais de 2018 no Paquistão.
Dentro do Paquistão o exército fornece apoio deliberado até na formação de quadros políticos. No início de agosto de 2017, o JuD abriu uma nova frente ao formar um partido político chamado Liga Muçulmana Milli (a “Liga Nacional Muçulmana”, MML) com o objetivo de tornar o Paquistão um “verdadeiro estado islâmico e de bem estar social”. A MML, liderada por Saifullah Khalid, um assessor próximo de Saeed (fundador do LeT) e membro fundador do JuD, pretende apresentar candidatos nas eleições gerais de 2018.
A organização não perdeu tempo entrando na disputa política, depois que o primeiro-ministro Nawaz Sharif foi forçado a renunciar em 16 de agosto de 2017, deixando vago seu assento na Assembleia Nacional para o distrito eleitoral o JuD rapidamente apresentou um candidato sob a bandeira do MML para a eleição suplementar de 17 de setembro de 2017, a fim de preencher essa vaga. Como o MML ainda não havia sido registrado como partido político, o candidato (Muhammad Yaqoob Sheikh) apresentou seus documentos de nomeação à Comissão Eleitoral do Paquistão (ECP) como candidato independente.
Apesar de existir há apenas quatro semanas, recebeu quatro vezes mais votos do que o Partido Popular do Paquistão (PPP) naquela eleição suplementar. Isto deve se certamente ao fato de ter se beneficiado de apoio explícitos do aparelho de segurança. Em seguida, apresentou um candidato, Alhaj Liaquat Ali Khan, numa eleição suplementar de outubro de 2017 para o círculo eleitoral NA-4 em Peshawar, embora este não tenha tido o mesmo sucesso, mostrando tamanho do apoio e como o Estado Profundo paquistanês usa seu aparato militar para operações de guerra híbrida.
Bibliografia:
DEVASHER, Tilak. Pakistan: Courting the Abyss. HarperCollins; 1ª Edição, pág. 480. 2018.
FAIR, C. Christine In Their Own Words: Understanding Lashkar-e-Tayyaba. Ed. OUP. India. Pág. 320. 2019.
SIDDIQ, Ayesha. Military Inc. Dentro da economia militar do Paquistão SEGUNDA EDIÇÃO.
SYED, Jawad; PIO. Edwina; KAMRAN, Tahir e ZAIDI, Abbas. Faith-Based Violence and Deobandi Militancy in Pakistan. Palgrave Macmillan; 1ª Edição. Pág. 567. 2016
[1] Licenciado em História pela UCSAL
[2] Lashkar-e-Taiba
[3] Jamaat-ul-Dawa
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