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Os 40 dias de Milei e a (necessária) paciência de Jó

Na Bíblia Sagrada, uma das histórias mais conhecidas do Antigo Testamento é a de Jó: um personagem que viveu nos tempos dos patriarcas, conhecido pela sua grande riqueza – àquela época, medida em rebanhos de animais e extensões de terras – e que, em um único dia, se vê abatido por uma série de catástrofes que o faz perder tudo: animais, servos, seus filhos e, por fim, sua saúde – maiores detalhes recomendo a leitura dos dois primeiros capítulos do livro que recebe o nome dele. No caso dos três primeiros, o servo que escapava de cada tragédia mal terminava de contar o que aconteceu e outro aparecia para relatar outro infortúnio.

Ressalvadas as devidas proporções em relação à “tragédia de proporções bíblicas” relatada nas Escrituras, os 40 primeiros dias de Javier Milei na Argentina foram – e ainda têm sido – uma sucessão de flagelos se abatendo aos nossos vizinhos quase que de forma contínua (isso, talvez, para além de minha agenda de trabalho, explique o fato de ter demorado a escrever sobre), sem tempo para pausas para se indignar ou lamentar (e cabe lembrar, não que não tenha sido falta de aviso). Mal uma medida com efeitos claramente negativos era adotada e começava a entrar em vigor, se tomava outra, e assim sucessivamente.

Claro que alguns podem alegar que parte dessas ações eram inevitáveis e necessárias para se fazer os devidos “ajustes” na economia argentina – de fato, ela acumula uma série de distorções fiscais, monetárias e cambiais que se sobrepõem umas às outras e tornam a condução do país praticamente inviável, e mesmo em um cenário contrafactual que o neoperonista Sérgio Massa fosse eleito, seria necessário, em algum grau, puxar o freio de mão.

Por exemplo, uma desvalorização do peso, uma das primeiras medidas do mandatário libertário, era necessária no sentido de dar algum nível de “realismo” cambial aos nossos vizinhos, visto que a cotação oficial ao longo do governo do kirchnerista Alberto Fernández não dizia nada – a do dólar paralelo, também conhecido como “blue”, era a que de facto ditava o valor da moeda local.

Contudo, seja no “que” ou, com mais frequência, no “como”, estas medidas de Milei já dão sinais de que, muito provavelmente, ele não sabe o que está fazendo (ou se sabe, estamos diante de um quase sociopata no poder), haja vista que mesmo os “mercados” estão perdendo a paciência por lá. Um exemplo disso é uma medida, entre as previstas no Decreto de Necessidade e Urgência (DNU, um equivalente às Medidas Provisórias no Brasil, só que com anabolizantes), que permite aos argentinos fecharem contratos – seja de trabalho, seja de aluguel, por exemplo – com qualquer tipo de recurso: moeda, criptomoeda (como bitcoin), ou mesmo, nas palavras da Diana Mondino, ministra das Relações Exteriores, em “quilos de vaca ou litros de leite”. Se a expectativa era a dolarização de jure – não que isso seja bom, haja vista os efeitos disso no Equador, a realidade bate à porta dos argentinos com o escambo dos tempos anteriores à Antiguidade Clássica.

Some isso ao fato de agora ter província emitindo moeda própria a fim de honrar seus compromissos, iniciativa essa elogiada por Milei, que quer que isso se espalhe, temos mais um elemento adicionado à crônica instabilidade da economia argentina. Afinal de contas, a moeda, entre outras coisas, é uma unidade de conta ou medida – tal como existem as unidades de comprimento, massa, temperatura, etc. – e serve para dar referência ao valor dos produtos e serviços produzidos pela sociedade.

Tendo em vista isso, podemos até dizer se o peso argentino era inútil nesse sentido, mas a solução certamente não passa por pura e simplesmente eliminar a existência de um referencial a ser seguido, o que pode até “resolver” o quadro hiperinflacionário no curto prazo, mas os efeitos desestabilizadores sobre os agentes no longo prazo continuam, visto que estes buscarão, de alguma forma, se proteger.

Outro sinal claro na economia nesses quarenta primeiros dias de Milei no poder tem sido a disparada dos preços em diversos produtos e serviços, devido ao encerramento da política de subsídios adotada na gestão anterior – os preços desses produtos, especificamente, quase triplicaram. Evidente que alguns possam argumentar que tais medidas visavam corrigir distorções que eram custosas aos combalidos cofres públicos do país – o que concordo, cabe frisar. Mas a forma abrupta de executar tais ações e a quase ausência de maneiras de mitigar os efeitos de curto prazo disso aos mais pobres apenas piora um quadro que já não era nada bom no governo do kirchnerista Alberto Fernández.

Saindo um pouco – mas já voltando logo em seguida – da economia, o governo Milei tem a delicadeza e sutileza de um elefante em uma sala repleta de cristais. Entusiasta de uma aproximação incondicional ao Ocidente, antes mesmo de chegar à Casa Rosada o libertário argentino se opunha à entrada de seu país nos BRICS+ e pregava o afastamento em relação à China e ao Mercosul – lembrando que dois dos principais parceiros comerciais dos argentinos são justamente os chineses e os brasileiros. No caso dos primeiros, isso teve consequências imediatas: a China congelou US$ 6,5 bilhões em créditos de swap cambial em dezembro passado. Para um país altamente dependente de dólares e com reservas cambiais em posição negativa, não poderia ser em pior hora que isso poderia acontecer.

Como afirmei antes, essas foram apenas algumas – de muitas – medidas tomadas por Milei nesses primeiros quarenta dias no poder e, devido à impossibilidade de falar de todas (nem se eu dedicasse cada artigo escrito neste site a falar de cada medida seria possível abordá-las), mas não poderia de deixar de mencionar outras ações não menos importantes, atabalhoadas e, por que não, perigosas, como privatizações de estatais que, mesmo necessárias em alguns setores (não, não acho que o Estado deva ser dono de tudo, mas isso é tema para outro artigo), tendem, no atual contexto, a serem feitas “na bacia das almas”, provendo irrisórios recursos ao país, ou ainda o fim das restrições à venda de terras para estrangeiros, o que, somado ao fim (de facto) da soberania monetária, transformam a Argentina em um não-estado.

Em suma, o governo Milei tende a ser um verdadeiro teste de paciência para os argentinos que, tal como Jó, terão que resistir à série de flagelos que está por vir. Resta saber quando, assim como o personagem bíblico, nossos vizinhos terão uma sorte melhor. Até a próxima.

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