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O fim da lua de mel de Lula com a opinião pública

Marcos Jr. [1]

O terceiro governo Lula atravessa apenas o seu segundo ano, apesar de parecer que passou bem mais tempo que isso. E não é para menos: muita coisa – nos cenários interno e externo – aconteceu nesse período aproximado de um ano e cem dias, tanto para melhor como para pior, além de acumular diversas vitórias – e também reveses – junto ao Congresso nas pautas de interesse. Por sinal, uma marca clara dessa nova passagem do petista pelo Planalto tem sido a imensa fragilidade de sua “base aliada” no Legislativo, e a oposição só não passeia (para além das viagens ao exterior) por incompetência.

Como num casamento, relacionamento sério ou de qualquer outra natureza – amorosa ou não –, chega um momento em que a euforia e novidade inicial passa e a rotina se estabelece, e é nesse momento em que o vínculo é realmente testado. Digressão feita, os levantamentos feitos no mês passado, seja da Quaest [2], seja da AtlasIntel [3], seja do Ipec [4] (antigo Ibope), seja do Datafolha [5], apontam num claro sentido: a “lua de mel” de Lula e seu governo, tanto com a imprensa como com a opinião pública, acabou. O relacionamento, se podemos chamar assim, “caiu na rotina”, com todos os altos e baixos que esta possui.

Diante desse estreitamento entre aprovação e reprovação, diversas explicações, seja à direita ou à esquerda do espectro político, são dadas para isso: uns entendem que isso é fruto de diversas trapalhadas verbais do presidente, sobretudo em temas sensíveis a alguns setores – como o recente conflito israelo-palestino em Gaza, seja para a comunidade judaica, seja para o eleitorado evangélico, ou ainda a questão do aborto, que gerou polêmica por conta de uma nota técnica [6] editada e posteriormente suspensa pelo Ministério da Saúde que derrubava fixação de prazo para o aborto legal, sem falar nas pautas identitárias.

Outros, por sua vez, ignoram isso, apelando ao “É a economia, estúpido”, expressão utilizada por James Carville, estrategista da campanha vitoriosa do candidato democrata Bill Clinton à presidência dos EUA em 1992. No Brasil, um exemplo mais próximo dessa linha de pensamento é o cientista político Alberto Carlos Almeida, que, no ano retrasado escreveu (em parceria com Tiago Garrido) o livro “A mão e a luva: o que elege um presidente” [7]. Ainda que eu considere a ideia defendida por ele incompleta no cenário atual (entrarei em detalhes sobre, mais adiante), tem o seu valor - Por sinal, recomendo a leitura deste livro justamente por considerar a validade, mesmo que parcial, dessa tese. E por fim, outros ainda acreditam que o problema reside – ou até se resume – na mera “comunicação falha” por parte do governo de suas ações.

Entre um e outro, acredito mais no “de tudo, um pouco”. De fato, sobretudo em um país desigual e com ainda numerosas carências como o Brasil os aspectos materiais como: economia, saúde, educação, segurança e etc., ainda pesam para uma parcela esmagadora da população, e impactam positiva ou negativamente na aprovação de um governo, podendo, no limite, levá-lo à queda precoce ou à derrota no pleito posterior. Não é preciso ser um especialista para pensar que o brasileiro médio quer que seu salário chegue ao fim do mês (e sobrando para algum lazer), não espere tanto na fila do posto ou pronto-atendimento, que seus filhos tenham um ensino decente e que possa realizar suas atividades diárias sem correr risco de ser assaltado (para não falar em algo pior).

E, nesses aspectos, alguns fatos neste início de 2024 afetaram, certa e negativamente, a percepção de como o governo lida com essas questões. Primeiro, tivemos um repique inflacionário [8] nos dois primeiros meses, potencializado pela disparada nos preços dos alimentos após diversas quebras de safra, causadas, em parte, pelo fenômeno climático El Niño. O “pão de cada dia” – sobretudo para aqueles menos favorecidos e da classe trabalhadora – é a face mais visível da inflação, e a mais perceptível ao se passar no caixa do supermercado. Evidente que isso pioraria – e muito – o humor do brasileiro.

Em segundo lugar, a percepção de que o governo pouco faz pela segurança pública, um problema recorrente em nosso país e que atravessa diversos governos. Ainda que essa percepção não esteja totalmente respaldada em fatos – por exemplo, houve queda no número de homicídios em 2023 frente a 2022 [9], a fuga de dois presos [10] ocorrida em um presídio federal em Mossoró (RN) e a demora de quase dois meses para recapturá-los [11] acendeu o alerta nesse sentido. A propósito, levando em conta o levantamento da AtlasIntel mencionado anteriormente, um dos pontos que ajudaram a piorar a avaliação do governo Lula [12] foi justamente o enfrentamento à criminalidade.

Por fim, o terceiro ponto – não menos importante, diga-se de passagem – que ajudou na deterioração da imagem do governo foi a epidemia de dengue [13] neste ano – a maior já registrada na história, sendo que o país mal tinha saído de um quadro já gritante da doença no ano passado. Com mais de 3 milhões de casos e mais de 1.200 mortos, uma endemia já conhecida dos brasileiros e com histórico de campanhas preventivas de conscientização e combate expôs a condução errática do Ministério da Saúde, pasta chefiada por Nísia Trindade, uma das escolhas impessoais do presidente e tido por ele como (quase) “indemissível”. A redução de verbas [14] destinadas às campanhas antes mencionadas no ano passado frente a 2022, bem como as férias autorizadas para Ethel Maciel [15], Secretária de Vigilância de Saúde e Ambiente (que trata justamente de doenças como a dengue), ajudou a dar razão aos críticos, que apontam desleixo da pasta com algo evitável.

Não é (só) a economia (ou a comunicação), estúpido

Como disse antes, por muito tempo a frase “É a economia, estúpido”, utilizada pelo então estrategista James Carville, que atuou na campanha do democrata Clinton, ressoou como quase um mantra em diversas campanhas eleitorais em diversas democracias mundo afora. E, por um bom tempo, teve – e ainda tem – um fundo de verdade: a melhoria das condições econômicas (inflação, emprego, renda e consumo), bem como, de outros fatores materiais pode ajudar ou atrapalhar na avaliação e recondução de um governo. E, como já afirmei, em países em que ainda há muito o que se melhorar – como o nosso Brasil – o peso disso é maior.

No entanto, este paradigma bastante aplicável ao cenário político-eleitoral nos anos 1990 e 2000, foi abalado. Há diversos fatores que ajudam a explicar essa mudança, mas mencionarei alguns: o choque econômico causado pela crise de 2008 [16]; as medidas dos governos para lidar com essa crise, que, apesar de ter sido eficaz para lidar com seus efeitos foram ineficazes para lidar com as causas sistêmicas do problema (sem falar que os gestores financeiros envolvidos na quebradeira generalizada saíram praticamente impunes); o enfraquecimento das medidas de bem-estar social decorrentes dessas medidas – sob o pretexto de “austeridade”; o subsequente crescimento da polarização política e a dificuldade cada vez maior de se formar consensos sobre os grandes temas nacionais; além do crescimento dos identitarismos, inicialmente à esquerda mas que posteriormente chegou à direita, se pensarmos no espectro político convencional.

Esse quadro, que começou a tomar forma – sobretudo – nos EUA e nos países europeus na virada dos anos 2000 para 2010, tornou-se o novo paradigma do debate político brasileiro a partir das apoteóticas “jornadas de junho”[17] de 2013 com um quadro – como mencionei no artigo que escrevi sobre o tema ano passado – de mobilização permanente das atuais esquerdas e direitas, cada vez mais polarizadas (com situações em que essa polarização refletiu em cenas de violência) e com cada vez menos pontos em comum sobre os grandes temas nacionais, aferrando-se em pautas de costumes, muitas delas importadas do debate político norte-americano sem qualquer relação com a realidade histórico-cultural brasileira.

Essa mudança nos eixos da discussão acabou turvando o debate público desde então, reduzindo a importância desses grandes temas e impactando, consequentemente o cenário político-eleitoral. Se antes bastava uma melhoria nas condições materiais imediatas da população para que houvesse elevação nos índices de aprovação do governo e possibilitasse uma tranquila reeleição no próximo pleito, hoje esses ganhos tornaram-se mais exíguos. E, mesmo não considerando a ideia de que um presidente – ou candidato à – ganhe ou perca determinado percentual de votos a cada frase dita, já não dá para desprezar a importância de discursos ou ações acerca de questões, vamos dizer assim, intangíveis. Isso, somado às cada vez menores intersecções para formação dos consensos mencionados antes, ajuda a tornar mais apertadas as margens de vitória em eleições nacionais.

Esse novo paradigma, a observar pelos resultados, é de certa forma corroborado: em 2014, Dilma Rousseff foi reeleita com 51,6% contra 48,4% de Aécio Neves, derrotando-o por uma margem de apenas 3,5 (três) milhões e (quinhentos) mil votos; em 2018, foi a vitória de Jair Bolsonaro com 55,1% contra 44,9% de Fernando Haddad, com uma margem de 10,7 (dez) milhões e (setecentos) mil votos, pode parecer muito, mas foi uma margem menor que o embate entre Dilma x Serra de 2010; por fim, tivemos a titânica disputa de 2022 entre Bolsonaro e Lula, com 50,9% dos votos para o candidato do PT contra 49,1% para o candidato do PL e uma margem de apenas 2,1 (dois) milhões e (cem) mil votos. Qualitativamente falando, os três certames tiveram em comum o uso de retórica agressiva por ambos os lados, refletindo no embate no ambiente público – real e virtual, bem como a centralidade de pautas outrora secundárias.

E quando o assunto é a avaliação dos governos, a exceção de Dilma Rousseff, cuja crise econômica que atingiu o país em 2015-16 ajudou a derrubar sua aprovação, tanto o governo anterior, de Bolsonaro, como o atual, de Lula, se comparado seus períodos homólogos, tiveram um curso semelhante: após um início com aprovação relativamente elevada e com certo capital político, essa aprovação foi caindo e sua reprovação, concomitantemente, subindo.

Para não delongarmos tanto nessa digressão histórica, vamos nos ater ao atual governo Lula e seu desempenho, não sem antes uma consideração deste que vos escreve: eu enxergo o governo de Lula 3 como um governo medíocre, no sentido de “mediano” mesmo. Não é um governo ruim, mas tampouco pode ser considerado bom – e, nem de longe, se compara aos dois governos anteriores do petista. Possui aspectos bons? Sem dúvida, mas há outros que são nefastos ao país. No entanto, como o governo anterior oscilou entre o ruim e o catastrófico tem-se vendido a ideia de que o atual momento é espetacular. Em outras palavras: saímos de um governo nota 4, fomos para outro com nota 6, mas estão vendendo o mesmo como se fosse um 10.

Considerações feitas, vamos lá: como disse antes, a escalada da inflação neste início de ano, a condução errática do governo em questões relacionadas à segurança pública (mencionei a fuga de dois presos de uma penitenciária federal, mas o exemplo igualmente recente do veto presidencial ao ponto principal do projeto de lei que acaba com as “saidinhas”[18] de presos em datas comemorativas) e a fraqueza diante de uma epidemia de dengue em curso desde o ano passado e que só neste ano até agora já tem mais mortos que o anterior acabou ajudando na piora da avaliação do governo, e acredito eu, são preponderantes.

No entanto, somado a isso, tanto o presidente como alguns de seus ministros têm desperdiçado tempo e energia em assuntos (ou pior, não-assuntos) que só fazem sentido para os setores mais identitários da militância de apoio ao governo, causando ojeriza, obviamente ao eleitorado mais à direita, mas, lamentavelmente alienando parte de um eleitorado em torno do “centro” que quer, pelo menos um governo que pareça funcional.

Um exemplo disso, deste ano foi a nota técnica do Ministério da Saúde que derrubava orientação do governo anterior, de Bolsonaro, para fixar prazo de aborto legal? Objetivamente falando, que ganho político o governo teria com um assunto que encontra resistência, inclusive, entre eleitores que aprovam o governo Lula? [19] Até que a nota técnica fosse suspensa, foi um ruído desnecessário que só serviu para dar fôlego à oposição bolsonarista. Outro episódio, de novembro passado foi quando a mesma pasta pagou por uma apresentação de dança erótica (o nome já diz muita coisa: “Batcu” [20]) em um encontro promovido pelo Ministério. Mais uma vez, entrando em dividida sem necessidade.

Mesmo a crítica de Lula às ações de Israel na guerra em Gaza – que, reitero, eram necessárias [21], mas, muito provavelmente o parâmetro de comparação utilizado – o Holocausto praticado pelo regime nazista na Alemanha – e o momento em que foram feitas as declarações, às vésperas dos protestos pró-Bolsonaro na avenida Paulista, também lhe impuseram algum custo na aprovação de seu governo.

Antes que alguém venha dizer que acredito na tese de que cada declaração de Lula o faz ganhar ou perder votos tão somente pela simples fala da mesma, torno a dizer que não acredito nisso. Porém, considerando um governo que no cômputo geral tem sido medíocre e tem seus pontos fracos em questões fortemente tangentes ao povo brasileiro cada vez mais expostos, por que se meter em “divididas” desnecessárias ou, ainda que necessárias, fora de momento ou tom? Se o humor do brasileiro não está exatamente bom, tudo o que não se deve fazer é agir de forma a piorá-lo.]

Em suma...

A lua-de-mel de Lula, seja com a imprensa, seja com a opinião pública (leia-se: eleitorado), acabou. Diante das circunstâncias apresentadas surpreende o fato de ter durado muito tempo, cerca de um ano. E tanto ele como seu governo precisam saber que não podem se dar mais ao luxo de errar. Diferentemente de vinte anos antes, em que os fatos levavam certo tempo para chegar às rodas de discussão graças as mídias dominantes, agora com as redes sociais, qualquer ruído vira sinal forte nessas redes, tornando-se rapidamente problemático ao governo.

Aproveito o momento para dizer que, sim, por mais que a comunicação do governo esteja falha – e muito falha por sinal, resumir o atual quadro a mero problema de comunicação é leviano. Quando um governo toma medidas indiscutivelmente boas, estas compensam até mesmo uma comunicação ruim. Mas, pelas razões apresentadas antes, não é esse o quadro.

Enfim, que deixemos o homem trabalhar. Contanto que ele, de fato, trabalhe.

[1] Formado em Engenharia de Produção e servidor público


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