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O acerto da fala de Lula acerca da ação de Israel em Gaza

Atualizado: 23 de fev.

Marcos Jr. [1]

Quem leu meu artigo [2] acerca da política externa do governo Lula sabe muito bem que, apesar da nítida evolução da diplomacia em relação à conduzida pelo governo Bolsonaro – sobretudo no período do chanceler [3] Ernesto Araújo – ela possui evidentes limitações, sobretudo pela sua defasagem em relação à leitura da atual conjuntura, a de um mundo mais fragmentado e instável, política, social e economicamente, em relação ao período (2003-2010). Tais limitações ficaram evidentes em diversos episódios como o da tentativa de mediação da guerra russo-ucraniana, o processo de acordo entre União Europeia (UE) e Mercosul e a tensão entre Venezuela e Guiana envolvendo o Essequibo [4].

Dito isso, outro fato relevante no cenário político internacional desde outubro tem sido a guerra envolvendo Israel e o braço paramilitar do Hamas, partido político que controla a Faixa de Gaza de fato e considerado grupo terrorista por Israel, EUA e a maior parte dos países europeus. Trata-se de mais um capítulo (lamentável, diga-se) do conflito israelo-palestino que se arrasta desde a partilha que resultou na criação dos dois Estados em 1948, que teve como estopim um ataque surpresa de militantes do Hamas a uma festa ocorrida nas proximidades da fronteira com Gaza, com dezenas de mortes e reféns feitos, além de outras atrocidades como estupros. A rapidez e a brutalidade do ataque surpreenderam há muitos.

Em resposta, Israel resolveu conduzir uma ofensiva militar em larga escala contra a Faixa de Gaza, a fim de, supostamente resgatar os reféns e neutralizar o grupo Hamas. Até aí entendo ser uma medida justa e necessária do ponto de vista imediato que um país soberano tem o direito de defender-se, portanto, faz parte do jogo político – Carl von Clausewitz [5] dizia que “A guerra é a continuação da política por outros meios”. No entanto, com o desenrolar do conflito e com diversas declarações [6] de integrantes do governo de Benjamin Netanyahu – por sinal, o gabinete mais extremista da história de Israel enquanto Estado moderno, com integrantes de partidos que declaradamente defendem um etnoestado judaico [7], sem o direito à existência de um estado palestino – o discurso de legítima defesa encampado pelo premiê e seus ministros fica cada vez mais difícil de sustentar.

Bombardeios indiscriminados a prédios civis (incluso escolas e hospitais), disparos contra civis desarmados, ataques contra campos de refugiados (isso após alegarem que fugir para aqueles locais seria seguro) e mesmo ações militares na Cisjordânia – território palestino em tese fora da zona de conflito dão a entender que o objetivo de Israel não é tão somente neutralizar o Hamas e pacificar Gaza como aparentemente se alega, porém seria em linhas gerais, inviabilizar a existência não só do Estado, mas também do povo palestino em si. Não à toa que a África do Sul entrou com uma ação contra Israel na Corte Internacional de Justiça [8] por genocídio, ação essa apoiada, diplomaticamente pelo Brasil.

O mais recente passo adiante nas críticas do atual governo brasileiro à condução da guerra brasileira – e que rendeu bastantes discussões tanto na imprensa como nas redes sociais – foi a recente declaração do presidente Lula (PT) em uma coletiva de imprensa com jornalistas em Adis Abeba, na Etiópia, comparando os ataques de Israel em Gaza ao Holocausto [9] – o genocídio de judeus promovido pelo regime nazista de Adolf Hitler na Alemanha e nos territórios ocupados por esta na Segunda Guerra Mundial.

Evidentemente que tal declaração, sobretudo por tocar num ponto tão caro para Israel gerou reações duras por parte tanto do premiê Netanyahu [10], que disse que Lula “desonrou a memória de 6 (seis) milhões de judeus assassinados pelos nazistas” e que “deveria ter vergonha de si mesmo”, como também por Israel Katz, Ministro das Relações Exteriores, que em um gesto claro de reprovação considerou o presidente brasileiro persona non grata [11], ou seja, uma pessoa que não é bem-vinda no país. Em resposta o embaixador brasileiro em Israel foi chamado de volta ao Brasil, um ato diplomático apenas menos grave que o rompimento das relações.

E tão evidente quanto – como disse antes – foi a repercussão interna desse entrevero: enquanto alguns defenderam a declaração de Lula – ainda que divergissem em aspectos pontuais no discurso (como a escolha da comparação com o Holocausto), a reação da oposição – sobretudo à bolsonarista, declaradamente simpática a Israel – não se limitou ao histérico repúdio nas redes sociais: deputados assinaram um pedido de impeachment contra o presidente [12] sob o pretexto de que a fala do presidente expôs o país ao perigo de guerra, configurando crime de responsabilidade (já adianto: boa sorte para convencer o Lira [13] a avançar com isso, vão precisar).

Mas, afinal de contas, por que Lula está certo?

Colocados os fatos – bem como a repercussão destes – entendo que, ainda que se possa considerar que Lula foi hiperbólico [14] ao comparar a ação israelense em Gaza ao Holocausto (um tema caríssimo tanto a Israel como aos judeus), a fala do presidente foi correta. Mais ainda, foi uma reação um tanto tardia do atual governo a episódios recentes de ingerência em assuntos internos brasileiros, como a guarda de dados da suposta espionagem ilegal da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) [15] em Israel durante o governo Bolsonaro, ou ainda a reunião do embaixador do país com parlamentares da oposição e o ex-presidente Bolsonaro, ocorrida ano passado [16].

Primeiramente, tratemos o aspecto pedagógico do discurso: ainda que não fosse necessariamente essa a intenção de Lula ao mencionar o Holocausto – um dos mais terríveis e sistemáticos planos de extermínio de um grupo étnico ao longo do século XX – ele trouxe à luz uma verdade: o fato de um povo ter sido oprimido no passado não significa necessariamente que ele esteja isento de, em algum momento futuro, tornar-se opressor. Aliás, o fato dessa terrível opressão ter ocorrido contra seus antepassados deveria servir de alerta a todos – principalmente aos israelenses – de que isso, de nenhuma forma, deveria se repetir. Ninguém está isento do pecado original, nem mesmo o “povo escolhido”.

Em segundo lugar, mesmo admitindo que a comparação com a “solução final” nazista fosse forçada, não significa que os desdobramentos da ofensiva militar em Gaza promovida por Israel não possam ser comparados com outros episódios não menos ultrajantes na história, inclusive os ocorridos no regime de Adolf Hitler: da mesma forma que o assassinato de um civil alemão – mais precisamente o diplomata Ernst von Rath – por um judeu alemão, serviu de pretexto para a Kristallnacht (Noite dos Cristais), um ataque punitivo coletivo e indiscriminado a lojas, edifícios e sinagogas judaicas, episódio que precedeu o Holocausto, o ataque do Hamas a uma festa ocorrida em uma região fronteiriça à Faixa de Gaza está virando pretexto para uma punição coletiva e indiscriminada aos civis palestinos. E, dadas as declarações de integrantes do governo de Benjamin Netanyahu fica um tanto difícil sustentar que tal quadro se resuma a uma pura e simples legítima defesa de uma agressão (isso sem levar em conta o mérito do que levou a esse quadro, algo bem mais complexo).

Terceiro ponto – e talvez o mais espinhoso, embora longe de esgotar a discussão – é que a fala de Lula, pois mais forte e necessária que seja, ainda não tocou o bastante em aspectos de nossas relações com Israel (bem como do contexto do conflito israelo-palestino que dura mais de 75 anos). Para começo de conversa – e diferente dos ditos “patriotas” que pregam a genuflexão incondicional à estrela de Davi – não é o Brasil que deve satisfações a Israel. Afinal de contas, se o estado judeu existe desde 1948, foi graças a uma iniciativa que teve a decisiva participação de um brasileiro – o diplomata Oswaldo Aranha, então presidente da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas. Israel deveria lembrar-se disso e, no mínimo, demonstrar eterna gratidão ao nosso país.

Aliás, se há um aspecto recorrente de nossas relações com Israel é a completa assimetria entre as partes: em muitos momentos, mostramos deferência ou adotamos uma “política de boa vizinhança” mesmo quando a recíproca não foi verdadeira. O exemplo mais gritante disso foi a morte de José Alberto Albano do Amarante [17], tenente-coronel da Aeronáutica e um dos cabeças do programa nuclear brasileiro, ocorrida em 1981, com possível envolvimento do Mossad, o serviço secreto israelense. Isso seria motivo suficiente para o rompimento das relações, mesmo assim adotamos uma postura complacente.

E, caso tenhamos que nos ater ao quadro mais atual, poderíamos relembrar os episódios recentes em que, como mencionei no início, dados provenientes de espionagem ilegal de cidadãos brasileiros praticada pela ABIN estariam armazenados em Israel, ou ainda a participação do embaixador do país em reunião com parlamentares da oposição, em que esteve o ex-presidente Jair Bolsonaro. Há claros sinais de intromissão em questões internas de nosso país que mostram claramente que nossa deferência não é, devidamente, correspondida. A propósito, se levarmos em conta o aspecto comercial a relevância de Israel nas trocas com o Brasil é baixíssima, mesmo considerando apenas o Oriente Médio: a participação dos países do mundo Árabe e do Irã é muito maior, quadro esse que nem mesmo Bolsonaro alterou.

Por fim, cabe frisar que os ataques do Hamas aos civis israelenses, ocorrido em 7 de outubro de 2023 (e, que fiquem claro, merecem forte condenação, independente das circunstâncias), são um ponto de inflexão numa escalada de animosidades na qual Israel é, também, parte do problema. Desde pelo menos a segunda passagem de Benjamin Netanyahu no poder, entre 2009 e 2020, Israel tem se afastado cada vez mais da solução de dois estados preconizada por Oswaldo Aranha ao tomar medidas que, na prática, inviabilizam a existência do estado palestino.

Construção de assentamentos na Cisjordânia (algo reiteradas vezes considerado ilegal), militarização de boa parte deste território – cerceando a liberdade de circulação dos palestinos que vivem ali, concretagem de nascentes de água [18] por forças israelenses, civis palestinos desarmados sendo alvejados (e mortos) por soldados israelenses que ocupam a região. Isso sem falar do bloqueio imposto à Faixa de Gaza que caminha para 17 (dezessete) anos de duração. Situações essas que, somadas a outras e às recentes ações e declarações do governo israelense tornam razoável a comparação com o regime do Apartheid [19] [20] praticado na África do Sul até 1994. E lembrando que essa escalada é o capítulo mais recente de violações que vem sendo praticadas desde a partilha ocorrida em 1948. Não à toa que no governo de Ernesto Geisel (1974-79) o Brasil votou a favor de uma resolução que considerava o sionismo uma forma de racismo [21].

Voltando a focar nesse ciclo mais recente do conflito israelo-palestino, tal endurecimento e obstinação de Israel no afastamento da solução de dois estados serviu tão somente para sentenciar à morte por inanição qualquer possibilidade de solução política para esse histórico entrevero. E quando a política morre, tem-se o ambiente propício para a barbárie, o terror e a guerra. O que de fato aconteceu.

Sendo assim, reitero: Lula foi correto em sua crítica à condução do conflito em Gaza por parte de Israel. E não deveria retratar-se por isso: fazê-lo seria uma humilhação para a diplomacia brasileira, colocando-a de joelhos para os interesses de um Estado ingrato que fez pouco, comercial e diplomaticamente, para merecer a deferência que ainda possui. E, se for para que rompermos as relações diplomáticas com eles, que assim seja feito: motivos para isso já temos há muito tempo. Temos muito menos a perder do que eles, que futuramente (e se der a lógica), serão vistos com a mesma abominação que foi a África do Sul dos tempos do Apartheid, caso mantenham o curso de suas atuais políticas.

[1] Formado em Engenharia de Produção e servidor público

[3] Foi ministro das Relações Exteriores do Brasil entre janeiro de 2019 e março de 2021. Graduado em Letras pela Universidade de Brasília (UnB) ingressando na carreira diplomática em 1991.

[4] Conhecida também como Território Essequibo na Guiana, é uma região geográfica do Planalto das Guianas que fica entre o rio Cuyúni e o rio Essequibo, com uma área territorial de 159 500 km.

[5] Carl Phillip Gottlieb von Clausewitz foi um militar do Reino da Prússia ocupando o posto de general. Estrategista militar e teórico da guerra.

[13] Arthur Lira – Presidente da Câmara dos Deputados.

[14] Figura de linguagem identificada em declarações do cotidiano, em textos literários ou em propagandas. Caracteriza-se pelo exagero proposital em uma declaração.

[20] Um regime de segregação racial implementado na África do Sul em 1948 pelo pastor protestante Daniel François Malan — então primeiro-ministro —, e adotado até 1994 pelos sucessivos governos do Partido Nacional, no qual os direitos da maioria dos habitantes foram cerceados pela minoria branca no poder.


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