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Nova Guerra Fria: a corrida dos chips e a posição do Brasil

Neste último domingo, o Fantástico, programa jornalístico dominical exibido pela Rede Globo, exibiu uma reportagem sobre a corrida dos chips, um dos focos das latentes – ou nem tão latentes – tensões entre EUA e China, as duas grandes superpotências deste século. Trata-se de uma matéria de 15 minutos (que, inclusive, recomendo assistir) que fala sobre a importância desses dispositivos no mundo atual, sua distribuição de produção – a esmagadora maioria concentrada em Taiwan – e como os Estados nacionais atuam para estarem (ou permanecerem) na fronteira tecnológica da área.

Este último ponto, em particular, foi o que chamou mais a minha atenção na reportagem, sobretudo pelo fato de a emissora não ter feito questão de ignorar, omitir ou mesmo “dourar a pílula” quanto ao assunto: tanto o surgimento do Vale do Silício, nos EUA, como o advento do setor de tecnologia em Taiwan – que tem a Taiwan Semiconductor Manufacturing Company Limited (TSMC) como a grande estrela na produção de chips, com cerca de 55% de participação no mercado global – tiveram, em comum, o fato de que o Estado, direta, ou indiretamente, financiou e conduziu políticas de desenvolvimento desses setores em seus respectivos países. Por sinal, em outros países, adotou-se a mesma tática.

O surgimento do Vale do Silício, como mostrado na reportagem do semanário global, tem relação íntima com o Departamento de Defesa dos EUA e a NASA, agência espacial norte-americana, que foram os principais financiadores de pesquisas científicas que levaram ao surgimento do microchip e da rede mundial de computadores, a Internet, tendo como o contexto a disputa com a União Soviética. Já em Taiwan, o objetivo do governo àquela época era que a pequena e acidentada ilha no Mar do Sul da China deixasse de ser mera exportadora de produtos agrícolas como frutas tropicais (isso te lembra algo?) – sua vantagem competitiva –, passando a atuar no seleto mercado de semicondutores.

De fato, é bastante positivo o fato de a Globo, uma emissora de TV que em seu jornalismo possui clara tendência liberal – algo que abordei no meu primeiro artigo de 2023 aqui no BG – deixar claro, sem máscaras ou rodeios, que o Estado atuou como organizador, planejador e regente, coordenando agentes públicos e privados para o desenvolvimento de um mercado que, como disse, é bastante seleto. Contudo, parafraseando uma frase clichê dos críticos à Vênus Platinada – ou não mais (tão) Platinada, o mais interessante a Globo não mostra.

Basicamente se trata da posição do Brasil nesta Nova Guerra Fria, que, sob os devidos incentivos, poderia nos colocar, no longo prazo, em uma posição mais neutra nessa disputa entre as grandes potências, além de, claro, reduzir nossa dependência tecnológica destas. Mas a Globo que apresenta o papel regente do Estado no desenvolvimento da indústria de alta tecnologia nos EUA e em Taiwan no Fantástico é a mesma que, em seu jornal diário – O Globo – dedicou editoriais criticando a revogação da liquidação da CEITEC, estatal brasileira de semicondutores criada em 2008, no segundo governo Lula e encaminhada para ser fechada no governo Bolsonaro em 2021, esta suspensa pelo TCU naquele mesmo ano.

Cabe mencionar trechos de um deles, publicado em 30 de dezembro de 2022. É dito, por exemplo, que “[…] Estados Unidos e países europeus têm dificuldades para penetrar”. E isso impediu que tanto os EUA como a União Europeia alocassem somas bilionárias para a produção de chips em seus respectivos países? A propósito, o objetivo é reduzir a dependência que esses possuem de Taiwan e Coreia do Sul, países líderes do setor de semicondutores, o que ficou patente com a escalada de preços dos eletrônicos com as quebras nas cadeias de suprimentos por conta das paralisações durante a pandemia de Covid-19.

Outro trecho, recitado quase como um mantra: “[…] A melhor forma de gerar riqueza para desenvolver-se é apostar nos setores em que há vantagens comparativas, mesmo que isso signifique importar todo o resto”. Fica a pergunta: se Taiwan tivesse seguido essa receita nos anos 70, como mencionado na reportagem do Fantástico, ela teria uma empresa que controla, hoje, mais da metade da produção de chips do planeta? Nada leva a crer que sim. A propósito, se a Coreia do Sul, vice-líder no mercado de semicondutores, fosse levar essa dica a sério, ela seria, talvez, um expoente na produção de… Arroz. Isso mesmo, aquele cereal branquinho que comemos no almoço e no jantar. Felizmente, Park Chung-hee não deu trela para isso, a despeito da dica do Banco Mundial.

Não pretendo delongar muito sobre isso – creio que a leitura de “O Estado Empreendedor”, de Mariana Mazzucato, seja um bom norte para mostrar o papel do poder público em financiar, planejar e coordenar investimentos e ações não só no próprio setor público, mas também dos agentes privados, que, em diversas ocasiões, só aportam recursos quando os riscos inerentes aos projetos de negócios já foram bastante diluídos – por sinal, uma regra que funciona não somente no setor de alta tecnologia. Apenas espero que a revisão da liquidação da CEITEC feita por Lula neste governo seja o primeiro passo de um processo que coloque nosso país entre os ponteiros do setor.

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