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Milei: entre a tragédia anunciada e a farsa moral

Desde o dia 13 de agosto, quando os eleitores na Argentina votaram nas primárias – votação que decide os candidatos que irão disputar as eleições presidenciais de outubro –, nossos vizinhos, bem como boa parte da opinião pública, recebeu com surpresa e espanto a notícia da ascensão meteórica de Javier Milei, economista autodeclarado “anarcocapitalista” que foi claramente o vencedor do pleito que serve como um termômetro para as eleições gerais, com 30% dos votos. Sérgio Massa, candidato da situação que tenta salvar a lavoura do kirchnerismo, ficou em segundo lugar com 21%, e a macrista Patrícia Bullrich ficou em terceiro, com 17%.

Essa surpresa e espanto tem suas justificativas: a surpresa, pelo fato de as pesquisas eleitorais em geral não terem captado a ascensão de Milei, apontando um segundo ou mesmo terceiro lugar para ele; e o espanto, devido ao fato de ter conseguido esse desempenho apesar de – ou pior, por causa de – seu discurso radical que, entre outras coisas, abarca a extinção do Banco Central argentino e a dolarização de jure do país, legalizar a venda de órgãos (e até crianças) e dar fim à saúde e educação públicas – substituindo-os por um sistema de vouchers. Estes pontos, bem como outros, voltarei mais adiante.

Desde então, um intenso debate tem se formado acerca dos posicionamentos do economista libertário que se tornou uma grande “sensação” da política argentina, bem sobre como ele deve ser enquadrado e o que podemos esperar de um eventual governo dele na terceira força econômica latino-americana. Alguns dos termos empregados mais confundem que ajudam na discussão, devido à sua imprecisão acerca do real pensamento do candidato libertário.

Primeiro, sobre o fato de ele ser abordado na imprensa como um candidato de “extrema-direita”, sendo frequentes as comparações com o ex-presidente Jair Bolsonaro aqui no Brasil e com figuras da política ocidental enquadradas com esse rótulo. Trata-se de uma terminologia que, como disse antes, é bastante imprecisa – a propósito, não é de hoje que a definição de “extrema-direita” é elástica a ponto de abarcar grupos de pensamentos díspares, seja em economia, seja em costumes. E, em relação a Milei, essa imprecisão torna-se ainda mais evidente.

Ainda que radicalize na defesa de posições liberais na economia e seja opositor ao aborto – alinhado com algumas figuras rotuladas como de “extrema-direita”, suas semelhanças com essas praticamente acabam por aí. Em relação a drogas, Milei defende a legalização do consumo delas; No tocante ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, não se opõe a essa questão – não só isso, trata-o como mero contrato; Isso sem falar nas já mencionadas defesas de pautas típicas de círculos “ancaps” que conhecemos muito bem aqui no Brasil, como permitir a venda de órgãos e até mesmo de crianças.

Como já podem notar, o economista argentino foge muito do que seria considerado um político de “extrema-direita”, mesmo considerando a elasticidade que esse termo tem hoje em dia. Mas isso não significa que seu conjunto de propostas não seja problemático a ponto de não se esperar nada além de uma tragédia anunciada. Em suma: antes fosse de “extrema-direita”. Ele é um libertário, o que, a meu ver, seria ainda pior.

Para começo de conversa, uma de suas principais propostas é o fim do Banco Central argentino, tornando o dólar americano, oficialmente, a moeda corrente do país (assim já o é de facto, haja vista que o peso argentino, hoje, foi reduzido a pó). Primeiro, temos o simples fato de que com isso a Argentina abriria, de maneira total, sua soberania monetária, atrelando sua estabilidade econômica aos reflexos dos ventos soprando sobre a economia americana. Segundo, tendo em vista o primeiro – como muito bem mencionado no artigo de José Paulo Kupfer – a Argentina precisará ampliar suas reservas de dólares – cujos analistas acreditam, hoje, estar zeradas ou mesmo negativas – para fazer frente a demanda pela moeda.

Isso significa que nossos “hermanos” precisarão contar com a sorte de manter o saldo da balança comercial bastante favorável – reforçando ainda mais a dependência do setor primário (sobretudo o agro) e/ou vender ativos a estrangeiros para atrair esses dólares – por sinal, algo bastante em linha com a proposta de redução radical do Estado por parte de Milei. Se isso não for o suficiente, será preciso contrair empréstimos externos para obter esses recursos (como se a Argentina não estivesse endividada dessa forma o bastante), medida essa que tende a pressionar para cima as taxas de juros, penalizando o setor produtivo e reduzindo o crescimento potencial do país.

E terceiro, como desdobramento dos dois anteriores, é preciso levar em conta o tamanho da Argentina, que como mencionei antes, é a terceira força econômica da América Latina e a segunda da América do Sul. Citar o suposto sucesso do Panamá – um minúsculo país da América Central que é, inclusive, um paraíso fiscal – como um certo econocoach fez para defender a dolarização da Argentina, é de uma completa ignorância – para não dizer má fé sobre o tema.

Resumidamente, a proposta de Milei de dolarizar de jure a economia tende a implodir o que resta da indústria argentina, tornando-a ainda mais dependente do setor primário, sobretudo o agro – que, recentemente, sofreu com os efeitos de uma prolongada estiagem causada pela La Niña e dilapidar o que resta do próprio estado argentino sem garantia de que isso sanará a inflação crônica do país – desde a década passada este enfrenta índices oficiais de preços em dois dígitos anuais e, agora, está nos três dígitos. Não sem efeitos colaterais, como já mencionado.

Ainda no campo econômico, mas indo para a interface com a política externa, Milei quer que a Argentina abandone o Mercosul e deixe a China de lado como parceira comercial, voltando-se para os EUA e Israel. Sua alegação, de um pseudomoralismo um tanto bobo, é se seu país “faria comércio com um assassino”. Para além do tiro no pé do próprio ponto de vista econômico – a China, junto com o Brasil e os EUA, está entre os três principais parceiros – vem a pergunta acerca da opção supostamente superior do ponto de vista moral: eu conto ou vocês contam?

Saindo da seara econômica e entrando na seara dos costumes, a situação se torna dantesca – sobretudo para os ditos “patriotas” e “cristãos” daqui que estão em êxtase com o Paulo Kogos argentino: como disse antes, ele defende a legalização das drogas, é contra o casamento enquanto instituição – reduzindo-o a mero contrato entre duas partes, apoia a venda de órgãos e já ponderou a questão da venda de crianças. Junte isso a um cenário de completo desespero após dois ciclos políticos desastrosos – o kirchnerismo atual, que Sérgio Massa quer dar sobrevida, e o da oposição macrista, agora encarnada na figura de Bullrich – e temos o resumo do projeto de Milei: Port-au-Prince na economia e Ottawa (ou Estocolmo) nos costumes. Eis o que os ditos “conservadores” brasileiros apoiam para seu vizinho.

Já que falei em desespero, o voto em Milei, diferente de Bolsonaro – que, em 2018, poderia ensejar esperança de algo melhor – é um voto completo de desespero. Parafraseando Dante Alighieri em A Divina Comédia, o que os argentinos querem é abandonar toda a esperança com o mínimo incômodo possível. Mas nada leva a crer que este incômodo será mínimo. Até a próxima.

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