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Lula e os riscos da “diplomacia da cerveja”

Em março de 2022, o então candidato e hoje presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) disse que o conflito entre Rússia e Ucrânia, ainda em curso hoje, seria resolvido “em uma mesa tomando cerveja”. A fala, na ocasião, despertou críticas, seja do ex-presidente e então candidato a reeleição Jair Bolsonaro (PL), seja de Ciro Gomes (PDT), seja de Fabiana Tronenko, ex-embaixatriz da Ucrânia (vide primeiro link). A explicação dada pela assessoria do petista, naquele período, era que a expressão utilizada foi “uma metáfora para diplomacia e diálogo”.

Avancemos um pouco, agora com Lula já presidente. A diplomacia brasileira, após quatro anos de sectarismo, retóricas anti-China e alinhamento automático (sem quaisquer contrapartidas) com os EUA sob o governo Bolsonaro – ainda que, com a substituição do folclórico Ernesto Araújo pelo Carlos França no cargo de chanceler, a postura do Itamaraty tornou-se mais pragmática, sendo o episódio da visita à Rússia no ano passado um dos poucos acertos da política externa do governo que passou (quiçá o único) – passou por um processo de normalização (até certo ponto) neste terceiro governo do petista, tendo no retorno de Mauro Vieira, que comandou o Itamaraty no segundo governo Dilma.

Evidentemente que se trata de uma melhora em relação ao circo de horrores de boa parte do governo anterior (neste caso me refiro, sobretudo, ao período de Ernesto Araújo a frente do Itamaraty), mas o fato de ser melhor não significa que a diplomacia de Lula 3 seja, necessariamente, boa.

Digo isso no sentido de que tanto Lula, como Mauro Vieira (nosso atual chanceler), como o próprio Celso Amorim (que chefiou o Itamaraty nos dois primeiros governos do petista e hoje é assessor especial, tendo bastante influência na política externa), leem o mundo com as lentes de vinte anos atrás. Na época, os EUA ainda eram a única superpotência global, enquanto que Rússia e sobretudo a China – hoje a principal desafiante dos norte-americanos – ainda estavam em processo de afirmação. Para aquele período, a retórica multilateralista, em que era (quase) sempre possível conciliar os diferentes interesses dos países, e bastante transparente na fala de Lula acerca da solução do conflito russo-ucraniano, poderia funcionar muito bem.

Contudo, essa lente é completamente obsoleta no mundo atual. Estamos em um cenário em que os EUA, a despeito de ser ainda uma superpotência, estão sendo desafiados cada vez mais pela China, a superpotência emergente, em todas as frentes (objetivos cada vez mais manifestos com Xi Jinping, o atual presidente, no poder). Por sua vez, a Rússia, sob Vladimir Putin, retornou ao tabuleiro geopolítico global, desafiando de forma cada vez mais aberta o Ocidente – a questão da guerra na Ucrânia é, talvez, um dos desdobramentos mais gritantes. Isso sem falar na ascensão da Índia, do Irã e de outras potências ou países em via de se tornar uma. Junte isso ao lento, gradual e seguro declínio do “Império Americano” e da Europa no lado ocidental neste início de século (e as tentativas fracassadas de intervenção em outros países) e temos um mundo mais fragmentado e instável. Definitivamente, 2023 não é, nem de longe, 2003.

Trazendo uma metáfora do futebol, é como se um time – ou Seleção – de ponta resolvem contratar um técnico que já foi campeão há muitos anos (Felipão e Luxemburgo, oi), apostando na experiência passada do treinador para buscar um desempenho melhor. No entanto, esse treinador resolve fazer o mesmo que fazia àquela época, ignorando que o esporte mudou bastante nesse ínterim, e suas limitações, com o passar do tempo, ficam expostas. A diplomacia lulista, vinte anos depois, é, basicamente, a ideia da “família Scolari” ou do “pofexô Luxa” aplicada às relações internacionais.

O primeiro exemplo disso está na já mencionada – e mal-sucedida, por ora – tentativa de intermediar as negociações de paz entre Rússia e Ucrânia, uma das apostas do atual governo de se projetar na política externa. Não que a iniciativa não seja bem-intencionada, afinal de contas trata-se de um conflito sem perspectivas de solução em curto prazo por ambos os lados envolvidos e, claro, há a questão da tragédia humanitária envolvida – seja com vidas ceifadas, famílias destruídas e a crise migratória, por sinal, a mais aguda desde a Segunda Guerra Mundial.

No entanto – e como já mencionado – tanto Rússia como Ucrânia estão, no momento, irredutíveis em relação ao prosseguimento da guerra. Por um lado, a Rússia pretende seguir com o que denominam “operação militar especial” até o cumprimento de seus principais objetivos, que é a “desnazificação” do aparato de Estado ucraniano, a neutralidade militar do mesmo, e, claro, a “libertação” do Donbass (não entrarei no mérito dessas questões, apenas antecipo que a posição russa não está de toda errada, e que a população daquela região não tem pretensões de retornar ao domínio ucraniano). Por outro, a Ucrânia, graças ao apoio financeiro e militar do bloco ocidental, age na prática como um proxy deste e não pretende fazer concessões até repelir completamente o que chamam de “agressão russa” e retomar as regiões ocupadas, inclusive a Crimeia, anexada em 2014 na esteira dos ocorridos no Euromaidan (cabe lembrar que foram os crimeios quem decidiram, em referendo, tornar-se parte da Rússia).

Diante disso, por mais bem-intencionada – e até mesmo, em certos pontos, louvável – que seja a postura da diplomacia brasileira em intermediar possíveis negociações de paz nesta guerra, o fato é que os dois polos envolvidos já possuem uma posição formada, sendo o ocidental ainda mais radical no sentido de que mesmo a posição de neutralidade é interpretada como “pró-russa”, ignorando diversas nuances em torno das situações que se tornaram pivôs deste conflito. Sendo assim, a melhor posição do Brasil é, mantendo a neutralidade, esperar a situação decantar até que o apoio ocidental aos ucranianos se torne insustentável (a meu ver, estamos nos aproximando disso).

O segundo exemplo dessas limitações na política externa de Lula 3 está nas negociações do acordo de livre comércio entre a União Europeia (UE) e o Mercosul, que, após um período de congelamento sob o governo Bolsonaro, aparentava avançar sob a liderança do petista. Entretanto, a maior boa vontade não foi suficiente para aplacar o protecionismo (mal) disfarçado de Emmanuel Macron, presidente da França, que invocou mais uma vez o argumento ambiental para barrar o avanço das negociações. Mais uma vez, pouco adiantou ceder os anéis para poupar os dedos.

Mas, talvez, o exemplo mais nítido da “diplomacia da cerveja” está patente com a recente escalada de tensão entre Venezuela e Guiana pela região do Essequibo, no entorno da fronteira com o Brasil. Diante do esperado resultado favorável no referendo do último domingo (03/12) para a incorporação da região, rica em petróleo e ouro, o país governado por Nicolás Maduro tem intenções de anexar um território correspondente a 2/3 da Guiana. Como líder natural da América do Sul, a postura ideal do Brasil deveria ser de neutralidade, mas isso não significa passividade.

Ao mesmo tempo que a Venezuela deveria ser dissuadida de optar pela via armada para resolver a questão, a Guiana deveria ser igualmente dissuadida de optar por instalar bases militares estrangeiras (no caso, dos EUA) na região disputada, o que, na prática, representa um cerco à Amazônia brasileira e, consequentemente, uma ameaça aos nossos interesses nacionais. Uma possibilidade de instalação de uma base brasileira no Pirara (território que já foi nosso, e que acabou sendo parcialmente cedido para a Guiana nos tempos de colônia britânica graças a uma arbitragem feita pela Itália), somada à facilitação para operações da Petrobras no Essequibo, poderia ser uma moeda de troca.

Contudo, por uma leitura diplomática que, mesmo sendo bem-intencionada, é míope – a ideia de que a amizade ideológica entre o atual governo e o regime chavista venezuelano poderia servir de meio para uma mediação entre os dois países sem precisar subir o tom, o resultado é que Maduro não foi demovido da ideia de anexar o Essequibo e, como provável resultado, a Guiana acabará sendo empurrada para o colo dos norte-americanos. Afinal de contas, para um país cujo território do tamanho do estado de Roraima e população menor que de muitas cidades grandes brasileiras, contar com as próprias forças é suicídio. Ainda mais que não se trata da única disputa fronteiriça que eles possuem (sim, o Suriname também tem interesse em um pedaço do país).

Em suma, a diplomacia petista, por melhores que sejam suas intenções no sentido de buscar uma solução pacífica para as disputas entre as nações – algo, inclusive, preconizado pela atual Constituição Federal (Art. 4º) –, ignora a atual realidade geopolítica global, que, evidentemente, é muito diferente de vinte anos antes. O Brasil precisa exercer, ativa e altivamente, seu papel natural de líder da América do Sul, um dos principais líderes – junto com Argentina e México – da América Latina, e um dos principais players do tabuleiro que é o mundo atual, multipolar, fragmentado e mais instável.

Não enxergar – ou fingir não enxergar este cenário – apenas reforçará a posição da América Latina como mero palco das disputas entre as superpotências mundiais, apequenando a posição brasileira na região. Chamar o pessoal para “tomar cerveja” pode ser necessário, mas, sobretudo em situações em que uma das partes pretende recorrer à força, pode não ser suficiente. Às vezes, será necessário dar uns murros na mesa e, eventualmente, expulsar o “valentão” do bar. Até a próxima.

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