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Leite, as enchentes no RS e o fiscalismo porco

Marcos Jr. [2]

O mês de maio tem sido marcado no noticiário nacional pela tragédia que se abateu sobre o estado do Rio Grande do Sul (RS) por conta das chuvas que caíram em volume recorde, causando mais de 150 mortos (no momento em que escrevo este artigo chegou a 157, além de 88 desaparecidos), inundações em larga escala em bairros e mesmo cidades inteiras, deslizamentos de terra que destruíram ou obstruíram rodovias, além de outros danos em larga escala à infraestrutura – a inundação total do Aeroporto Internacional Salgado Filho em Porto Alegre, devido à cheia do Guaíba, é, talvez o exemplo mais nítido – e às atividades econômicas, com impactos sensíveis ao Brasil como um todo – a preocupação com uma forte escalada inflacionária decorrente do choque de oferta nos alimentos é um exemplo nesse ponto.

Diante desse cenário catastrófico, cabe uma menção honrosa para a gigantesca onda de solidariedade vinda de todas as partes do país, com doações provenientes da sociedade civil como um todo – seja em dinheiro ou em itens de primeira necessidade – e de diversos níveis do poder público (municipais, estaduais e federal) disponibilizando recursos financeiros e humanos para ajudar a mitigar o sofrimento dos atingidos.

Porém, cabe outras duas menções – ambas desonrosas – as duas situações que, lamentavelmente, emergiram a partir dessa crise: a primeira, a onda de desinformação e de discursos divisionistas que geram animosidade e atrapalham nas ações de enfrentamento a esse grande flagelo sobre o povo gaúcho; a segunda, o uso da situação por aproveitadores para agir de maneira lesiva à sociedade gaúcha, seja cobrando preços abusivos por itens básicos, seja praticando crimes contra os atingidos ou contra as equipes de socorro e/ou de segurança.

Feitas as menções, tanto honrosas como desonrosas, vamos ao ponto: no momento que comecei a escrever este artigo dia 20 de maio, foi publicada uma entrevista [3] da Folha de S. Paulo a Eduardo Leite (PSDB), governador do estado do RS. Desde o início da tragédia há uma tentativa – com bastante condescendência da grande imprensa – de “polimento” da imagem do chefe do Executivo gaúcho, mostrando-o como um servidor dedicado ao povo e evitando de fazer questionamentos pertinentes acerca de sua atuação – ou pior, falta dela – em relação às medidas que poderiam ter sido tomadas para diminuir o impacto da tragédia e às que ainda serão adotadas para reconstruir o estado.

Em um trecho da entrevista ao ser questionado sobre os estudos que apontavam para a possibilidade de um aumento significativo das chuvas no RS, Leite respondeu que esses estudos “e alguma forma alertam, mas o governo também vive outras pautas e agendas”, e que “a agenda que se impunha ao estado” era o “restabelecimento da capacidade fiscal”. Em miúdos, até era preciso fazer alguma coisa, mas havia outras prioridades. Espantoso, para dizer o mínimo por enquanto.

No entanto – e por mais espantoso que seja, essa visão encontra um grande eco na grande imprensa: tão logo se falou sobre a necessidade de um plano de reconstrução do RS, a grande preocupação de setores desta foi sobre o “populismo fiscal”, como neste artigo [4] da jornalista Raquel Landim para o jornal Estadão. Os tuítes do também jornalista Carlos Alberto Sardenberg (você pode conferi-los aqui [5], aqui [6], aqui [7] e aqui [8]), mais conhecido pelos seus comentários sobre economia nos meios de comunicação do Grupo Globo, são outro exemplo evidente dessa compreensão – ou falta dela, como falarei mais adiante.

Essa visão deriva de uma compreensão muito limitada (e estou sendo bem generoso no uso do termo) do papel do Estado e que, mesmo sob uma leitura liberal – como adultos à mesa, ignoremos as leituras libertárias e anarcocapitalistas – essa limitação seguiria patente: a de que a economia do setor público funciona (ou deveria funcionar) como a doméstica ou ainda como a de uma empresa, e suas decisões deveriam ser orientadas de maneira semelhante.

O principal ponto dessa limitação é elementar: o finalístico. Diferente da administração doméstica ou empresarial, o papel do Estado é prover bens e serviços públicos à sociedade: segurança, saúde, educação, infraestrutura, entre outros. Isso sem falar no efeito multiplicador de seus gastos sobre a demanda agregada da economia, algo que não se aplica quando falamos de uma casa ou uma empresa. Aliás, mesmo que enxergássemos como válida a analogia da gestão do Estado com a de um lar ou de uma empresa, há circunstâncias que será preciso gastar mais do que se tem em certo período: seja para a aquisição de um imóvel, um investimento em um negócio com grandes chances de sucesso ou ainda numa emergência de saúde de algum dos integrantes da família (quem já teve pai ou mãe doentes de forma mais séria tem ideia de como é esse momento).

Apenas alguém que tem uma noção muito rasa de economia doméstica e/ou empresarial – e mais rasa ainda de administração pública – trata a ideia de “responsabilidade fiscal” (aspas, pois esta só faz sentido no âmbito dessa última) como um fim em si próprio, em vez de um meio não (necessariamente) para a propalada tese de “atrair investidores externos”, mas sim para dar maior suporte à capacidade do Estado de realizar investimentos estruturantes que permitam elevar a economia a um novo patamar. Em outras situações, ainda que não tenham essa finalidade, são necessários porque o custo de não agir no futuro será (muito) maior, com impactos, inclusive, no fiscal.

Neste último caso, a ação – ou pior, a falta de ação do governo Eduardo Leite – em tomar medidas que visassem mitigar de alguma forma as perdas materiais e sobretudo humanas decorrentes das inundações (e lembrando, ano passado o RS, junto com SC, foi atingido por chuvas torrenciais, que mataram 47 pessoas, causando um prejuízo estimado em R$1,3 bilhão), sob o pretexto da “responsabilidade fiscal”, acabará levando justamente ao (necessário) abandono desta. Parafraseando Winston Churchill ao criticar o acordo de paz de Munique assinado por Chamberlain, entre o desastre e a “responsabilidade fiscal”, Leite preferiu o desastre. E ficará sem o fiscal.

Ou, como diriam meus pais quando era criança, é o típico caso de “economia porca”: deixa de se gastar com obras e planos de contingência que permitissem ao longo dos anos preparar o estado para cenários catastróficos similares a este – e com as mudanças climáticas, isso tende a ser mais frequente, daí a necessidade cada vez maior de adaptação [9] – e agora será preciso um volume de recursos muito maior (em, dez de maio especialistas estimavam em até R$ 90 bilhões [10] para se reconstruir o estado do RS, portanto pode ter certeza que isso agora seria bem otimista), com boa parte destes proveniente da União para colocar o estado gaúcho de pé novamente.

Em suma, o fiscalismo porco defendido por Leite e endossado por setores da grande imprensa, longe de ser responsável, estrangula a capacidade do Estado em prevenir e estimula o perdularismo na hora de remediar. Esperemos que ao menos após esta triste situação possamos aprender de uma vez por todas, muito embora eu tenha poucas esperanças nesse sentido.

Notas de "Leite [1], as enchentes no RS e o fiscalismo porco":

[1] Eduardo Figueiredo Cavalheiro Leite graduado em Direito. Filiado ao Partido da Social Democracia Brasileira, governador do Rio Grande do Sul.

[2] Formado em Engenharia de Produção e servidor público


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