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Europa, crise energética e o duplo padrão moral

Creio que já seja público e notório que a Europa, sobretudo com o estouro do conflito entre a Rússia e a Ucrânia (e seus desdobramentos), aprofundou a espiral de crises que já estava em curso com o pós-pandemia – cujo principal efeito, com a retomada das atividades, fora a escalada da inflação a patamares não vistos em décadas. Sobretudo a partir da adoção de sanções econômicas contra a Rússia – um dos principais fornecedores de energia –, o velho continente enfrenta a disparada dos preços desta (até 11x) e a perspectiva de escassez em pleno inverno, agravando um quadro inflacionário já ruim (como afirmei antes) e trazendo o fantasma de uma recessão devido ao estrangulamento da oferta de gás e petróleo.

Se parafraseando Louis Pasteur, a sorte ajuda os competentes, no caso europeu o azar atrapalha aqueles que metem os pés pelas mãos. Não sendo bastantes as consequências de sancionarem o principal fornecedor de energia (por sinal, trata-se do maior erro geopolítico desde o Tratado de Versalhes) e ajudar o lado rival no conflito, uma série de ondas de calor e a pior seca em 500 anos causaram quebras de safra, piorando um quadro inflacionário que já não estava menos ruim na alimentação e trazendo uma perspectiva sombria e aparentemente superada: a de que a Europa possa enfrentar, em algum grau, a fome. Não atoa que a União Europeia (UE) resolveu procurar o Brasil para descongelar as discussões do acordo com o Mercosul. Afinal de contas, nenhum dos líderes querem brincar com fogo. E, a depender do quanto isso pode piorar, literalmente...

Mas não é propriamente disso que irei tratar, muito embora ajude a contextualizar a situação. Todo esse quadro deixou patente algo que acompanhantes mais atentos do noticiário internacional e analistas sérios (não cheerleaders de um ou outro jogador do difícil xadrez geopolítico) notam há algum tempo: o duplo padrão moral dos europeus para lidar com os desdobramentos das múltiplas crises que atingiram seus países em cheio, e sem perspectiva de melhora tão cedo.

A crise energética, a mais evidente delas, é um exemplo formidável desse ponto: diante do estrangulamento da oferta do gás russo e a disparada dos preços – e lembrando que em alguns países (sobretudo a Alemanha) a energia nuclear é um tabu –, o velho continente sinalizou um retorno ao carvão, uma fonte não renovável e altamente poluente.

Veja bem, não que a matriz energética europeia atual, a despeito dos esforços de aumentar a participação de fontes mais limpas e do marketing em torno disso, fosse um exemplo de limpeza. Mas só imaginem, por um instante, se o Brasil ousasse fazer algo semelhante a fim de ampliar a oferta de energia. Por menos, em relação às queimadas na Amazônia (que sim, são um problema), o acordo UE-Mercosul ficou congelado nestes três últimos anos, e Emmanuel Macron, um dos principais líderes políticos dos países que integram o bloco (no caso, a França), flertou com uma ameaça velada (ou nem tão velada assim) à soberania nacional em relação à floresta, ao mencionar a ideia de “internacionalização” da mesma.

A propósito, já que falo sobre floresta, uma matéria publicada no dia 08/09 no New York Times abordou a extração de madeira em países da Europa Central para atender à demanda por energia na Europa Ocidental. Não sendo o bastante ter quase que eliminado por completo as florestas nativas em boa parte de seu território, ainda se dilapida as que restam, sobretudo nos países mais pobres do continente, a fim de atender a demanda de países que, volta e meia, se apresentam como “paladinos da moral” em matéria de política ambiental – e lembrando que o Brasil, visto como o “vilão” do meio ambiente (e veja, estou longe de concordar com o atual governo nesta matéria), possui uma proporção muito maior de florestas nativas ainda preservadas. Podemos falar da “internacionalização” delas ou está cedo ainda?

No caso da França – uma vez que falei sobre a ameaça velada de Macron – cito a questão dos gigantescos incêndios florestais que devastaram o país durante as sucessivas ondas de calor que atingiram o velho continente, inclusive em regiões não acostumadas a um tempo tão quente no verão, como no oeste do país. Os formadores de opinião bem pensantes que aplaudiram o presidente francês àquela ocasião pouco falaram a respeito para além do discurso de que isso é um sinal das mudanças climáticas e de que devemos agir a respeito. Não que não devamos, mas o mínimo que se espera é uma ação minimamente coerente com o discurso. E é isso que falta não só à Europa – foco deste artigo – mas também ao Ocidente em sua maioria. E a crise energética apenas expôs isso de maneira mais nua e crua.

Claro que alguns podem vir e alegar que tais medidas adotadas pelos europeus para contornar a falta de oferta da Rússia – que, por sinal, persistirá até que as sanções deem uma trégua – e que, tão logo a situação se acalme na Ucrânia, os países do velho continente buscarão retomar o curso pelas fontes mais limpas e renováveis. Mas convenhamos que fornecer apoio financeiro e mesmo militar a um dos lados envolvidos no atual conflito tende a prolongar o mesmo, o que, em curto e mesmo médio prazo, apenas aumentará a necessidade dessas medidas “temporárias”, enquanto, por muito menos, países emergentes podem entrar na mira de sanções econômicas.

Quem quiser defendê-las por acreditar na pauta ambiental está livre para fazer isso. Afinal, a liberdade existe (infelizmente) até para os estúpidos. Mas bater palma para quem quer meter o bedelho em assuntos nossos enquanto não se mostra capaz de resolver algo semelhante por lá é o cúmulo. Até a próxima, meus caros.

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