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A querela dos juros, da política fiscal e da autonomia do Banco Central

Nos últimos dias, o debate público brasileiro no campo econômico tem sido movimentado por conta de, pelo menos, duas questões importantes: a primeira tem que ver com a nova regra fiscal, apresentada ontem pelo Ministério da Fazenda; a segunda tem que ver com os recorrentes atritos entre o governo Lula e o Banco Central (BC) diante da taxa básica de juros (Selic), hoje em 13,75% ao ano (a.a.), a maior em quase sete anos.

Tendo em vista que em termos reais – ou seja, descontada a inflação – é a maior taxa de juros do mundo e que esta serve como parâmetro para os juros de diversas modalidades de financiamento a pessoas físicas e empresas, é preocupante um valor tão elevado, principalmente se considerar que houve um estrangulamento de crédito a várias firmas – mesmo as maiores – fator que, somado a outros, precipitou pedidos de recuperação judicial de algumas delas. Tendo em vista ainda o cenário de baixo crescimento e o desemprego, que, apesar de não estar alto, também não está baixo o bastante para se considerar pleno emprego, trata-se de um quadro que inspira certo cuidado.

Antes, porém, que eu discorra sobre os pontos que dão norte ao título deste artigo, é preciso fazer algumas observações: primeiro, se por um lado não acredito que o BC atue como mera “caixa de ressonância” dos mercados ao determinar o custo do dinheiro para a economia (há quem defenda essa tese), por outro, também não acredito que a autoridade monetária tenha varinha de condão e baixe a Selic “porque sim”. O BC pode até muito a depender das circunstâncias – inclusive criá-las –, mas não pode tudo.

O episódio da queda livre da Selic ocorrida entre 2019 e 2020 não me deixa mentir: tivemos um cenário inédito de juros reais próximos a zero e, em seguida, negativos. Em tese, ao menos para alguns colegas desenvolvimentistas (nada contra, inclusive simpatizo com alguns dos pressupostos), o setor produtivo, finalmente, poderia se fortalecer.

No entanto, o que se viu foi algo completamente diferente: com os juros extremamente baixos em um país cuja nota de crédito é especulativa – comparada a potências como Bangladesh, Guatemala e Costa do Marfim – o resultado foi uma fuga massiva de capital, com o real sofrendo uma desvalorização de cerca de 40% em poucos meses e levando o dólar a romper a inédita marca de R$ 5 (em alguns momentos chegou a se aproximar dos R$ 6), pressionando os índices de inflação tão logo a demanda represada pela pandemia desse sinais de normalidade. Como sabemos, dólar caro torna as exportações mais vantajosas, o que reduz a oferta no mercado interno e pressiona os preços deste. Fora a pressão direta por meio dos insumos importados.

E, igualmente longe do pressuposto defendido por alguns de que isso poderia ajudar a indústria, esta seguiu em declínio em sua participação no Produto Interno Bruto (PIB). Em suma, o movimento temerário de reduzir a taxa básica de juros para além de um patamar aceitável ajudou a escalar a inflação – inclusive mais cedo em relação a outros países atingidos pela pandemia – e levou a autoridade monetária a outro movimento que, talvez, mostre-se igualmente temerário: elevar rapidamente a Selic, fazendo com que em cerca de dois anos ela subisse mais de 11 pontos percentuais. Para se ter ideia, o último movimento “altista” na taxa, ocorrido entre os anos de 2013 e 2015, foi de 7 pontos.

É claro, o Banco Central, diante das circunstâncias, tem na Selic seu principal instrumento de combate a inflação. O governo que passou, de Jair Bolsonaro, também teve sua responsabilidade na má condução das políticas fiscal, cambial e de preços de produtos administrados, seja por não aprovar as reformas estruturais, seja por não adotar alguma forma de controle de capital ou mesmo assegurar alguma oferta ao mercado interno de alguns bens – alimentos principalmente. Mas não muda o fato de que a atual gestão do BC tem suas impressões digitais nas derrapadas na condução da economia.

E não muda o igualmente fato de que a gestão Roberto Campos Neto (RCN), longe do oásis de eficiência e qualidade pintado por alguns faria limers e influencers do mercado financeiro, foi, para dizer o mínimo, medíocre e errática: em nenhum dos quatro anos completos o centro da meta de inflação foi atingido; em dois deles, o teto da meta foi rompido; como mencionei, o real foi maxidesvalorizado como fruto de um movimento errado (em grau, cabe frisar) em baixar a taxa básica de juros. A propósito, estamos nos encaminhando para o terceiro ano seguido do rompimento do teto da meta de inflação, se contarmos com 2023. Considerando a atual lei de autonomia do BC, sobretudo o 1º (parágrafo único) e 5º (Inciso IV), Lula teria argumentos mais que suficientes para demitir RCN. O que ele precisa fazer é “lacrar” menos para a militância e articular em favor disso.

Dito isso, vamos ao segundo ponto: ainda que eu acredite que o atual teto de gastos, aprovado ainda no governo de Michel Temer, não seja mais viável pela conjuntura que se desenhou nos últimos quatro anos – ainda em 2019, portanto antes da pandemia, já existia um artigo dos economistas Fábio Giambagi e Guilherme Tinoco apontando a necessidade de reformas na âncora fiscal –, é preciso algum mecanismo que regule, de maneira credível, os gastos públicos. Tendo em vista que nosso orçamento, a exceção de 2022, é deficitário desde 2014, acreditar que a solução para a economia seja gastar como se não houvesse amanhã é garantir que não teremos amanhã.

Sendo assim, vejo de forma levemente positiva a nova âncora fiscal proposta pelo Ministério da Fazenda, a despeito de ser pouco ambiciosa no sentido de assegurar os investimentos públicos e ter lacunas como certa dependência de ganhos de arrecadação. Digo pouco ambiciosa porque poderíamos adotar um “teto dual”, em que os investimentos públicos poderiam ser submetidos a uma banda mais flexível de crescimento, enquanto as despesas obrigatórias poderiam ser mais rigidamente ancoradas. Ao menos algum bom senso entrou na discussão.

Com a proposta da regra fiscal posta sobre a mesa – agora a bola é com o Congresso, cabe aos diferentes agentes envolvidos nessa discussão a fazer sua parte: ao governo, em empenhar-se na aprovação da meta e, de forma a trazer algum realismo às metas, mudar a meta de inflação, hoje em 3,25% (com 1,5 p.p. de tolerância para mais ou menos), um índice completamente irreal tanto na conjuntura recente como mesmo observando no retrovisor – em quase metade do século presente até agora a meta era de 4,5% (e 2 p.p. de tolerância), e a média da inflação no Brasil durante o Plano Real é superior a 6% ao ano. Com isso, tem-se o álibi necessário para buscar a redução da taxa básica de juros no próximo semestre. Lembrando ainda que o governo, via Conselho Monetário Nacional, tem dois votos favoráveis.

Ao BC, por sua vez, cabe colocar-se em seu lugar, entendendo que sua autonomia não lhe dá o direito de assumir o papel de “quarto poder” da República, sendo que essa mesma autonomia prevê responsabilidades que, ainda que não devidamente delimitadas em forma de metas (o que foi um erro da lei de autonomia do BC, a Lei Complementar 179/2021), deveriam ser observadas no espírito, conforme registrado no parágrafo único do Art. 1º (grifo nosso):

“Sem prejuízo de seu objetivo fundamental, o Banco Central do Brasil também tem por objetivos zelar pela estabilidade e pela eficiência do sistema financeiro, suavizar as flutuações do nível de atividade econômica e fomentar o pleno emprego.

Por fim, ao presidente Lula em específico, ele tem duas opções (não necessariamente excludentes): ou, ao menos em um primeiro momento, busca um cessar-fogo em relação a RCN, esperando alguma boa vontade deste com a regra fiscal proposta; ou, caso queira a demissão, invoque a própria lei de autonomia do BC para punir o atual presidente da autoridade monetária.

Sei que se trata de uma querela muito extensa, mas creio que, neste momento, temos um importante ponto de partida. Até a próxima.

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