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Marcos Junior e Túlio Aramont

A financeirização – Parte II: do day trade ao tigre da fortuna

“Especulação, em uma economia global, tem caráter disruptivo não somente em mercados domésticos, mas sobre países como um todo, criando uma espécie de cassino financeiro ampliado. (Fernando Ferrari Filho e Luiz Fernando de Paula [2], grifo nosso)

Marcos Jr. [3]

Túlio Aramont [4]

Na primeira parte [5] da série, o articulista Renzo Souza tratou, sob uma perspectiva histórica, sobre o fenômeno da financeirização da economia, bem como os aspectos ideológicos, jurídico-legais e econômicos decorrente desse processo – a propósito, ainda em curso (e recomendo que leiam). Nesta segunda parte, irei tratar de um desdobramento mais específico – e, por que não dizer, pernicioso – desse processo, e que talvez venha, em breve, se tornar uma nova fase (isso será abordado mais adiante). Fase esta em que a fronteira entre o mundo das finanças e um cassino torna-se cada vez mais tênue. Ou, simplesmente deixa de existir a ponto de muitos optarem por este último.

Existem diversos percursores dessa (possível) nova fase, mas cabe mencionar dois deles neste início, antes de irmos de maneira mais direta ao ponto, sendo: o primeiro, está na engenharia financeira praticada pelos bancos norte-americanos durante a bolha imobiliária que resultou na crise de 2008, com a criação de produtos financeiros como as CDOs [6] - Collateralized Debt Obligation), ou Obrigação de Dívida Colateralizada em língua inglesa, em que se misturava dívidas de alto risco (pouca chance de ser paga) com dívidas de baixo risco em pacotes que, de acordo com a classificação das agências de risco financeiro, acreditava ser de boa qualidade – não muito tempo depois se descobriria que era uma tremenda balela. Pior: muitas dessas CDOs eram reagrupadas em novos pacotes e eram convertidas em novas CDOs, e o processo se repetia ad aeternum.

Outro percursor digno de nota para este artigo, mencionado pelo articulista Renzo na primeira parte, trata-se das “criptomoedas” como o Bitcoin®, ativos que ganharam força nos últimos dez anos e vistos por alguns como uma alternativa às moedas nacionais pelo fato de fugir do controle dos bancos centrais nacionais, no tocante a sua emissão. Coloco entre aspas porque é, para dizer o mínimo, discutível chamar tais ativos – ou criptoativos – de moedas: o mérito dessa discussão não será aprofundado, mas as três propriedades de uma moeda [7] são: meio de troca, reserva de valor e unidade de conta. Tomando apenas a última propriedade, que se entende como referência de medição do preço de bens e serviços (tal como as unidades de medida para grandezas físicas), é difícil pensar num ativo que pode oscilar dezenas de pontos percentuais e que num único dia possa servir para esse fim.

Juntando a ideia de “especulação dentro de especulação” – algo digno do “sonho dentro de um sonho” que foi a premissa do filme A Origem (2010), do diretor Christopher Nolan – com a tentativa de “vender” previsibilidade a ativos alta e intrinsecamente voláteis no curto prazo, temos as premissas do que, possivelmente, venha a ser a mais nova fase dessa financeirização da economia, que afeta não só o mercado financeiro em si, mas também a economia real, visto que esta, conforme Mariana Mazzucato pondera muito bem em O Valor de Tudo [8], passa a adotar o “curtoprazismo” como modus operandi. Para não delongar ainda mais o texto, o foco será o caso brasileiro.

Day trade no Brasil: surgimento, expectativas e (dura) realidade

O day trade, modalidade em que ativos financeiros são comprados e vendidos no mesmo dia chegou ao Brasil em meio à abertura do mercado de capitais, consolidada a partir das décadas de 1990 e 2000. O marco inicial veio com o Plano Real (1994), que estabilizou a economia e criou um ambiente mais favorável para o desenvolvimento do mercado financeiro. Na esteira da globalização econômica, o Brasil aderiu à liberalização dos mercados, permitindo maior entrada de capitais estrangeiros e a diversificação de investimentos.

Com o avanço da Internet e o surgimento de plataformas de negociação eletrônica, como o home broker, a partir dos anos 2000, o mercado de ações tornou-se acessível a investidores individuais abrindo as portas para a popularização do day trade. Corretoras digitais começaram a conquistar espaço prometendo ganhos rápidos e atraindo milhares de novos traders. No entanto, o que era visto como uma oportunidade de lucro fácil logo mostrou seus riscos.

A grande maioria dos day traders no Brasil opera na B3, focando em ações e contratos futuros. Mas, enquanto o marketing de corretoras promove a ideia de que qualquer pessoa pode lucrar com o Mercado, as estatísticas contam uma história diferente: o day trade é uma atividade arriscada, e a maior parte dos investidores acaba no prejuízo.

Apesar de ser amplamente vendido como um caminho para a independência financeira, o day trade tem se mostrado uma armadilha para a maioria dos investidores. Um estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) [9], que analisou 98.378 traders entre 2013 e 2016 revelou que 99,43% desistiram da prática antes de completar 300 pregões. O que isso significa? A maioria não persiste tempo suficiente para gerar resultados positivos. E mesmo entre aqueles que continuam, os números são pouco animadores.

Dos 554 traders que permaneceram ativos por mais de 300 pregões, a média de lucro diário foi R$ 49 negativos. Apenas 127 pessoas (0,12%) conseguiram um lucro bruto diário superior a R$ 100,00, e menos de 0,08% atingiu ganhos acima de R$ 300,00 por dia. Esses dados mostram que a realidade do day trade é muito diferente das expectativas criadas. O caminho não é fácil, e a maioria dos traders perde dinheiro, muitas vezes de forma recorrente.

Ao contrário do que muitas campanhas sugerem, viver de day trade é uma realidade para poucos. A atividade se assemelha a uma aposta de alto risco – um “cassino”, como disse o economista Bruno Giovanetti, um dos responsáveis pelo estudo mencionado acima –, onde as chances de sucesso são mínimas e o fracasso é uma constante. A volatilidade extrema do mercado, somada às altas expectativas, faz com que muitos abandonem o day trade após sucessivas perdas. Trata-se de um jogo perigoso, com muito mais perdedores do que vencedores.

E esse clima de “cassino” no mercado financeiro, de certa forma, ajudou a preparar o espírito de uma parcela expressiva da população brasileira para práticas ainda mais, por assim dizer, selvagens, desta vez no contexto dos jogos de azar virtuais, como veremos mais adiante.

O advento das bets no Brasil: a porteira do inferno se abre

Antes de falarmos sobre a entrada das casas de apostas virtuais no Brasil, bem como seus impactos à saúde pública, economia e sociedade, é preciso abrir um parêntese para uma breve contextualização histórica [10] – visto que tentar a sorte para obter uns trocados, em um contexto mais amplo, são uma atividade quase tão antiga quanto à existência em si da humanidade: apesar de as apostas terem sido trazidas ao Brasil pelos europeus no século XVI, por meio de jogos de cartas, dados e outras formas de entretenimento, foi no século XVIII que surgiram as primeiras casas de apostas convencionais, surgidas juntamente com a criação das primeiras corridas de cavalos, passatempo favorito das classes mais altas.

Em 1982, já no período republicano, o barão João Batista Viana Drummond criou o memorável e popular “jogo do bicho”, na época destinado a aumentar a arrecadação para o zoológico administrado por ele. Já em 1917, no governo de Wenceslau Braz, foi criada a Loteria Federal, que se tornou um sucesso, ao mesmo tempo em que a prática de jogos de azar, criação de cassinos e casas de apostas foi banida. Esse banimento perdurou até 1934 quando Getúlio Vargas voltou a legalizar a prática, dando início a uma “era de ouro” dos cassinos, em que grandes estabelecimentos, sobretudo na Região Sudeste, faziam grande sucesso, contando com a visita de notáveis figuras internacionais da época, como: Albert Einstein, Janis Joplin, Frank Sinatra, Orson Welles e Walt Disney.

Contudo, o cenário de jogos de azar e cassinos passou por uma nova reviravolta em 30 de abril de 1946, quando o então presidente Eurico Gaspar Dutra assinou o decreto que proibiu a exploração de jogos de azar em todo o território nacional. Justificando a decisão como uma defesa da moral e dos bons costumes, Dutra encerrou uma era em que cassinos e jogos de azar faziam parte do entretenimento popular. Nos anos 60 e posteriormente 90 do século passado novas tentativas de legalizar e regulamentar os jogos de azar no Brasil foram feitas, porém sem o mesmo sucesso.

Esse decreto acima mencionado veio como parte de uma tradição moral e religiosa – presente à época e mesmo nos dias atuais – que enxergava os cassinos como uma ameaça à sociedade, e essa repressão fez com que o Brasil se diferenciasse da maioria dos países do continente americano. Enquanto cassinos floresceram em países como Argentina, Peru e Venezuela, no Brasil a prática foi relegada à clandestinidade. Nota-se, portanto, que a postura brasileira em relação aos jogos de azar, loterias e cassinos, ao longo da história, é repleta de ambiguidades, alternando períodos de liberação e proibição, bem como a busca do governo em monopolizar sua exploração nos períodos mais restritivos.

Finda a contextualização histórica, aceleremos um pouco os ponteiros para um momento mais próximo ao atual. O advento das casas de apostas virtuais no Brasil – mais conhecidas como bets, hoje dominantes nos patrocínios dos times de futebol, patrocínios de competições e nos intervalos comerciais de campeonatos, teve como ponto de partida a Medida Provisória nº 846/2018 [11], editada no governo Michel Temer e posteriormente sancionada (após aprovação no Congresso Nacional) como Lei nº 13.756/2018 [12], que legalizou as apostas esportivas.

Esse marco legal previa a regulamentação da atividade em dois anos, prorrogáveis por mais dois, porém isso não foi feito na época, e a ausência dessa regulamentação em tempo hábil, entre outros fatores, ajudou a criar um ambiente um tanto caótico no setor, cujas consequências seriam rápida e duramente sentidas pela sociedade nos anos seguintes.

A começar pelo próprio futebol, como foi mencionado anteriormente, as bets [13] são quase onipresentes, seja nos times, seja nas competições: 14 dos 20 times que jogam a Série A do Campeonato Brasileiro de Futebol – mais conhecido como Brasileirão – têm como patrocínio principal casas de apostas [14], as principais competições do esporte são patrocinadas por casas de apostas (inclusive o próprio Brasileirão), e propagandas destas bombardeiam nossos olhos, seja na publicidade presente nos estádios, seja na publicidade dos intervalos comerciais dos jogos, com propagandas de bets, uma atrás da outra, se sucedendo na televisão.

Isso sem prejuízo da publicidade nas redes sociais, com influenciadores apresentando o jogo como uma forma de testar suas habilidades analíticas no mundo da bola – afinal de contas, cada brasileiro se sente um técnico ou árbitro de futebol em potencial – para descolar uma grana. Algumas dessas pessoas se apresentam até mesmo como “traders esportivos” (soa familiar, não?), mostrando ser possível fazer das apostas esportivas uma fonte de renda, e, em um cenário econômico pouco alvissareiro como o dos últimos anos, com alta informalidade e precarização do mercado de trabalho, isso se tornou sedutor para muitos.

Contudo, tal como no daytrade, nas bets a “banca” vence na esmagadora maioria das circunstâncias: estimativas feitas pelo BC - Banco Central [15] apontam para um gasto mensal em apostas entre R$ 18 bilhões e R$ 21 bilhões, considerando apenas valores transferidos via Pix. Considerando um valor mediano e colocando isso em um ano (mantendo essa tendência), significa que, em um ano gasta-se com apostas um montante em torno dos R$ 234 bilhões, o equivalente ao PIB do estado de Mato Grosso. Sim, estamos falando de um volume que faz frente a uma das principais potências do agronegócio brasileiro.

Mas há dados que podem ser mais chocantes que esse: nesse mesmo levantamento apontou que os beneficiários do Bolsa Família [16], programa de transferência de renda do governo federal, gastaram R$ 3 bilhões em bets apenas em agosto, sendo que o dispêndio médio por apostador chegou a R$ 100,00. Considerando o valor médio do benefício R$ 681,09 [17], estamos falando de 14,7% desse valor gasto em apostas, o que na prática se trata de uma clara desvirtuação do propósito do programa e, na prática, dado o cenário atual de regulação (ou de falta dela), acaba sendo um financiamento público indireto para as casas de apostas.

Outras evidências preocupantes têm sido a disseminação das apostas em crianças e adolescentes em idade escolar [18], com estudantes gastando dinheiro recebido do Pé de Meia, programa criado pelo governo federal para estimular a permanência na escola durante o ciclo básico, em bets e em jogos de azar online como o “Jogo do Tigrinho” (que será tema da próxima seção). Ou ainda o crescimento dos gastos com apostas em concomitância com a redução dos gastos no varejo [19], ou seja, as pessoas estão deixando de adquirir uma roupa, um calçado, um eletrodoméstico ou mesmo comida para jogar. Ou ainda, um levantamento da Fecomércio-SP [20] que mostra que cerca de 1/3 dos apostadores jogam com o intuito de aumentar a renda ou mesmo fazer investimento.

Essas evidências somadas a tantas outras que aparecem e acumulam todos os dias nos noticiários, como pessoas acumulando dívidas da ordem de centenas de milhares de reais e famílias sendo desfeitas, bem como o fato de que as casas de apostas são taxadas em apenas 12% [21], inferior, como muito bem apontado neste excelente artigo de Lorenzo Mill sobre o tema em A Gazeta [22], à taxação sobre energia elétrica (41%) e combustíveis (60%), apenas reforçam a imoralidade do cenário regulatório atual: estamos falando de uma atividade que não agrega valor algum à economia real (na verdade, pelo contrário, drena recursos desta, bem como seu respectivo potencial de geração de emprego e renda), cria um enorme passivo para a saúde pública [23] dado os problemas decorrentes do vício e ajuda a desagregar famílias e, em consequência, a sociedade.

Ao mesmo tempo, é um sintoma, já de uma fase avançada, de uma economia altamente desindustrializada [24] e igualmente financeirizada, com poucos empregos que paguem bem [25] e um grau de endividamento crônico. Uma combinação que alimenta “soluções” desesperadas que não solucionam nada e aumenta ainda mais o desespero de muitas pessoas, como veremos em seguida.

O “tigrinho” e sua (poderosa) mordida

Como mencionado no início da seção anterior, a relação entre os brasileiros e os jogos de azar sempre foi marcada por dubiedades e, a despeito de existir uma tradição moral e religiosa refratária à prática, também havia – e há – uma grande aceitação popular dos jogos de azar, não à toa o sucesso das bets nos últimos anos. Nessa esteira de reabertura dos brasileiros para a sorte (?) que jogos como o Tigre da Fortuna - Fortune Tiger, em inglês, mais conhecido como Jogo do Tigrinho, emergiram.

Em diversas culturas na Ásia Oriental – sobretudo na China –, o tigre [26] simboliza, entre outras coisas, poder e riqueza, e o advento do "tigrinho”, agora como jogo de azar virtual pegou emprestado essa ideia de enriquecimento repentino e inesperado que, rapidamente, ecoou no imaginário popular e se assemelha à lógica especulativa que vimos no caso do day trade e das casas de apostas, só que com uma dinâmica muito mais acelerada.

Essa dinâmica existente no “tigrinho”, somada ao fato de que o público-alvo [27] deste e de outros jogos de azar virtuais, tal como o das apostas, são principalmente as classes C, D e, E. Com isso, acaba trazendo efeitos devastadores àqueles que, fascinados por ganhos fáceis e rápidos – e diante do cenário econômico dos últimos anos mencionado antes –, tenta a sorte num cassino que, diferente de uma casa de jogo convencional, está acessível a poucos toques numa tela de um telefone celular, o que potencializa ainda mais o estrago.

Basta uma breve pesquisa no Google® para encontrarmos casos de pessoas que perderam até centenas de milhares de Reais em um espaço de tempo da ordem de meses: pessoas que perdem R$ 110 mil [28], R$ 160 mil [29], R$ 200 mil [30] ou mesmo R$ 400 mil [31], para citar alguns casos, além de um consequente endividamento brutal [32] das famílias dessas pessoas, seja com bancos [33] ou mesmo com agiotas [34], neste caso trazendo riscos à integridade física ou mesmo à vida. Isso sem prejuízo do rompimento dos vínculos familiares [35] decorrentes dos vícios nesses jogos, sérios problemas psicológicos (inclusive levando alguns ao suicídio [36]), ou ainda a prática de crimes [37] a fim de sustentar o vício.

Outro ponto ainda não mencionado, mas nem por isso menos importante é a participação massiva de influenciadores digitais na divulgação do “tigrinho” – embora não só deste, geralmente ostentando carros, casas, viagens e outros bens ou itens luxuosos supostamente obtidos com o jogo. Para além do efeito potencializador em induzir as pessoas que assistem seus conteúdos ao vício, muitos acabam praticando de fato crimes ao fazerem esses anúncios [38], visto que esses ganhos aparentes nesses vídeos são em uma conta de demonstração desse jogo, que mostra mais ganhos ao apostador que uma conta real, que é a acessada pelo público.

Diante de tantos estragos à economia real, à saúde, à família e à sociedade causado por esses jogos de azar virtuais em geral, é aterrador que a resposta da classe política seja tão somente advogar pela liberação desse jogo [39], com uma regulamentação similar a das bets. Regulamentação esta que, como é possível perceber, é pouco eficaz no sentido de minimizar os riscos e minimizar os impactos negativos do vício.

A propósito, algo que também não foi mencionado, mas que também é importante, é a existência de uma “bancada das bets” [40] no Congresso, com a presença de parlamentares de todas as correntes do espectro político, indo do deputado da ala bolsonarista Luiz Phillipe de Orleans e Bragança (PL-SP) ao senador da base do governo Lula, Rogério Carvalho (PT-SE). Como se pode notar, o lobby para fazer do Brasil um paraíso do jogo é ambidestro. E, talvez, a única certeza que se tem é que a “banca” sempre vence.

Uma “economia pós-especulativa”?

Uma vez apresentado o percurso (e, veja bem, teria muito mais o que mostrar) de como saímos de um modelo econômico baseado na “economia real”, com sólidas bases no setor produtivo, para um modelo econômico financeirizado, com ênfase na especulação, e de como essa especulação, cada vez mais, fez o mercado financeiro se aproximar de um cassino em seu modus operandi, a ponto de muitos optarem por esse último para “investir” (muitas aspas nisso, afinal, cassino, por razões óbvias, não é investimento) e fazer sua renda extra.

A realidade é que, se antes a especulação financeira “clássica” por assim dizer, era ao menos baseada em ativos na economia real – tangíveis ou não – e diversas “bolhas” do passado, como a bolha das tulipas [41], ocorrida no século XVII nos Países Baixos, são um exemplo disso, a especulação financeira “moderna” sequer tem a preocupação de se lastrear em algo nesse sentido – sendo as próprias CDOs, produto financeiro mencionado no início deste artigo, um dos precursores desse novo “modelo”, visto que estas poderiam ser arranjadas em múltiplas iterações para formar novas CDOs. O day trade, bem como o advento das casas de apostas e dos jogos de azar virtuais, apenas acelerou – e muito – esse processo de descolamento da realidade.

Evidente que isso demanda discussões e estudos profundos em escala acadêmica e científica, mas neste caso, cabe uma especulação – a doce ironia deste artigo, há de se admitir; não seria uma surpresa se o fenômeno atual, no futuro, vier a ser chamado de “economia pós-especulativa” ou de “pós-financeirização”, devido ao fato de que, diferentemente da financeirização que vimos no final do século XX e início do século XXI, o que temos hoje é uma especulação que se alimenta e retroalimenta de si mesma, sem qualquer preocupação se esta possui bases em ativos reais.

O cenário atual de uma "economia pós-especulativa" deve alarmar a todos. Diante de um sistema que se alimenta do desespero e da vulnerabilidade da população, é preciso questionar: até quando permitiremos que vidas sejam arrasadas pela ilusão do lucro fácil? Até quando veremos a exploração desenfreada da esperança humana, em que cada derrota de um indivíduo representa o triunfo cínico de uma "banca" impiedosa? Mais preocupante ainda é o conluio entre setores políticos e interesses corporativos, que seguem legislando a favor dessa especulação voraz, enquanto uma parcela significativa da sociedade é atraída para esse labirinto de perdas e endividamento. O que se apresenta como "oportunidade" é, na verdade, uma armadilha deliberadamente estruturada para beneficiar poucos e desestabilizar muitos.

A financeirização em sua versão extrema substituiu o real pelo fictício e o produtivo pelo ilusório. Quem lucra com essa distorção? Certamente não são os trabalhadores, as famílias ou os jovens promissores. Este é o triunfo de uma elite especuladora que nada agrega de valor e ainda drena recursos das bases mais fragilizadas da economia real. É um ataque a tudo o que sustenta o desenvolvimento de um país justo e equitativo. O leitor atento perceberá que não se trata apenas de apostas ou day trades inofensivos, pois estamos falando de uma prática que desumaniza e desequilibra a própria sociedade. Esta "pós-financeirização" deve ser vista pelo que realmente é: um câncer que precisa ser extirpado, antes que a verdadeira economia – e a dignidade humana – sejam irremediavelmente destruídas.

Notas de "A financeirização – Parte II: do day trade[1] ao tigre da fortuna"

[1] Modalidade de negociação utilizada em mercados financeiros, visando a obtenção de lucro por meio da oscilação de preço durante o período do dia, com base em ativos financeiros.

[3] Formado em Engenharia de Produção, Especialista em Gestão Pública e servidor público.

[4] Professor de Geografia e Especialista em Cartografia e Geotecnologias.

[13] Termo da língua inglesa para “aposta”, to bet, apostar.

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