Renzo Souza Santos [1]
Para o sociólogo Immanuel Wallerstein, entende-se o capitalismo enquanto fenômeno histórico a partir do momento em que o capital passou a ser usado (investido) de maneira especial, tendo como objetivo, ou intenção primordial, a auto-expansão. Neste sistema, o que se acumulou no passado só é "capital" na medida em que seja usado para acumular mais do mesmo. Trata-se de um processo complexo e mesmo sinuoso. Para resumir, o autor se utiliza do termo capital como uma expressão, visando nomear essa meta persistente e autocentrada do detentor de capital (o acumulador de mais capital) e as relações que ele tem de estabelecer com outras pessoas para alcançar essa auto-expansão do próprio capital.
Apesar de parecer simples esse processo, a economia dita de Mercado e os defensores do "livre comércio" tiveram que travar uma longa batalha contra a economia mercantil. Com a derrota do mercantilismo, exigiu-se reformas importantes nas instituições políticas britânicas, como mudanças no sistema eleitoral, redução na influência das zonas rurais e o aumento do poder das cidades e de seus residentes de classe média. Mesmo com a reforma eleitoral implantada, o resultado final dos votos em 1846 e 1847 foi extremamente apertado e rachou o Partido Conservador (grande defensor das medidas protecionistas mercantis) Poucos anos depois, o Parlamento removeu os últimos vestígios do controle mercantilista britânico no comércio exterior.
A hegemonia desse pensamento ganha força nos anos de 1860, e o historiador econômico Jeffrey A. Frieden em seu livro, O Capitalismo Global, sustenta que a França se juntou à Grã-Bretanha em um abrangente tratado comercial, que liberalizou o comércio entre os dois países e conduziu grande parte do restante da Europa nessa mesma direção. Nos anos que se seguem, os estados Germânicos seguiram rumo à unificação em 1871, criaram uma área de livre comércio e depois abriram seus mercados para o resto do mundo. Muitos dos governos do Novo Mundo também liberalizaram o comércio, assim como fizeram as possessões coloniais remanescentes das potências europeias adeptas do livre intercâmbio de mercadorias. A era do capital havia começado de fato e a ordem do dia era a integração aos mercados mundiais. No decorrer do século XIX, o comércio dos países avançados cresceu de duas a três vezes mais rápido que suas economias. No fim do período, a parcela da atividade comercial na economia mundial era sete ou oito vezes maior em relação ao início do século.
Segundo o autor marxista Ernest Mandel em seu livro, Capitalismo Tardio, de 1972, o capitalismo apresenta três fases de desenvolvimento:
Fase 1 - o capitalismo de mercado, entre 1700 e 1850, quando o crescimento do capital industrial acontece no âmbito dos mercados domésticos;
Fase 2 - o capitalismo monopolista, que vai aproximadamente até os anos de 1960, quando se dá o esgotamento do 'boom' de reconstrução pós-guerra, e é marcada pelo desenvolvimento imperialista dos mercados internacionais e pela exploração dos territórios coloniais;
Fase 3 - o capitalismo contemporâneo, denominado por Mandel como “tardio”, que teria como elementos distintivos a expansão das grandes corporações multinacionais, a globalização dos mercados e do trabalho, o consumo de massa e a intensificação dos fluxos internacionais do capital.
É justamente sobre esse último estágio que falaremos nesse artigo. O estágio tardio teria entre suas principais características uma enorme expansão da capacidade produtiva baseada no desenvolvimento tecnológico, resultando em superprodução, porém, com redução do emprego industrial – fenômeno por vezes confundido com "desindustrialização" mediante transferência de postos de trabalho para o setor terciário, "terceirização" das atividades de apoio, não diretamente ligadas à produção industrial e precarização do emprego, deslocando-se o centro de gravidade da produção social da indústria para os serviços, conhecido como "terciarização" da economia.
Aqui encontramos o fenômeno da composição orgânica de capital, descrita por Karl Marx em seu magnum opus (Das Kapital). Essa "composição orgânica do capital" determina-se pelas mudanças na tecnologia, automação e mecanização da produção. Karl Marx, de maneira visionária, dizia que quando há um aumento na proporção de capital constante (capital destinado aos meios de produção, maquinaria, equipamentos das firmas), em relação ao capital variável (força de trabalho), diz-se que há uma alta composição orgânica do capital. Para Marx, isso ocorre quando a tecnologia substitui o trabalho humano, levando a uma maior produtividade, mas também a uma maior exploração do trabalho, a uma especialização do trabalho e a um aumento da desigualdade entre a massa de trabalhadores incapacitados, o que gera um desemprego intenso.
Esse período se confunde com a era do "neoliberalismo". O neoliberalismo nasce como resposta à crise política do liberalismo. Essa crise é apresentada como produto de tendências inelutáveis e não como resultado de políticas deliberadas. Uma primeira vertente desse pensamento, baseada em uma concepção a-histórica do capitalismo contemporâneo e em conceitos tais como: globalização e privatização, descreve o fenômeno como algo novo, ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, anuncia o "fim da história" ou perpetuação do status quo, em que um dos autores mais conhecidos é Francis Fukuyama.
Outro autor dessa tendência é Friedrich von Hayek, que escreveu em 1960 a obra Os Fundamentos da Liberdade. Nessa obra, ele enquadrou o mercado e o progresso numa moldura quase evolucionista. O economista austríaco apresentou o mercado como um sistema de informação sem rival: preços, salários, lucros altos e baixos são mecanismos que distribuem informação entre agentes econômicos de outra forma incapazes de saber, já que a massa colossal de fatos economicamente significantes não pode ser racionalizada por uma máquina central exógena a própria dinâmica do mercado.
Para ele, a intervenção do Estado é negativa, porque faz com que a rede de informações do sistema de preços emita sinais enganadores, além de reduzir o escopo da experimentação econômica. Quanto ao progresso, este ocorre através de uma miríade de tentativas e erros feitos pelos seres humanos, pois a evolução social procede mediante a “seleção por imitação de instituições e hábitos bem-sucedidos” como ele mesmo fala. Outro liberal famoso, o neocontratualista Robert Nozick em, Anarquia, Estado e Utopia, acredita que o Estado Mínimo como um guarda noturno, cuja tarefa consiste em fazer respeitar os "vínculos colaterais" que derivam da inviolabilidade dos indivíduos, os quais não são meios para o Estado e devem ser tratados pelo Estado como fins, ou seja, o Estado deve fornecer apenas medidas protetivas aos indivíduos enquanto detentores universais da propriedade privada e de "direitos", mas não deve intervir em outros âmbitos como a economia.
Na Teoria Geral, o economista John Maynard Keynes já havia delineado a ruptura potencial entre o dinheiro e a circulação de bens e serviços de uma economia, autonomizando e separando a circulação do dinheiro nas esferas industrial e financeira. A circulação financeira aqui torna-se um mundo de papéis, onde os títulos e valores mobiliários da riqueza são mantidos e negociados, incluindo as transações nas bolsas de valores, nos mercados monetários e a especulação. Do ponto de vista macroeconômico, o dito capital financeiro é empregado nos mercados de títulos (Bolsas de Valores, Bolsas de Mercadorias), e todo aquele capital fictício movimentado pelos bancos e instituições financeiras em geral. Esse capital financeiro pode também ser entendido como o capital representado por títulos, obrigações, certificados e outros papéis negociáveis e que podem ser convertidos em dinheiro com rapidez, já que seu poder de liquidez é realmente impressionante.
Um dos fatores causados pelo fenômeno neoliberal está exatamente na difusão do privilegio na total liberalização financeira e na globalização da tecnologia. Dessa forma, cria-se um mercado único de capitais que se instala por intermédio de uma série de reformas legislativas, das quais as mais significativas foram a liberação total do câmbio, a privatização do setor bancário e a abertura dos mercados financeiros. Essa liberação política das finanças é fundamentada numa necessidade de financiamento da própria dívida pública dos países que seria paga recorrendo-se aos investidores internacionais. Mas, no teórico, é justificada pela superioridade da concorrência entre os atores financeiros na administração do crédito, naquilo que diz respeito ao financiamento de empresas, lares e Estados endividados.
No campo jurídico, o Estado passaria a intervir o menos possível na esfera do Mercado, ou seja, os órgãos fiscalizadores e reguladores passaram a dar mais liberdade para a ação do capital financeiro. Esse processo se iniciou com as reformas neoliberais do republicano Ronald Reagan nos anos 80, mas o principal marco desse período foi a revogação da Lei Glass-Steagall, durante o governo do democrata Bill Clinton. Essa lei foi completamente revogada graças ao lobby do setor financeiro junto ao Congresso estadunidense, sendo então substituída pela Lei Gramm–Leach–Bliley (Gramm–Leach–Bliley Act ou Financial Services Modernization Act). A revogação da Glass-Stegall removia, portanto, a separação que antes existia entre os bancos comerciais e os bancos de investimento, os quais, fundamentalmente, especulavam com títulos mobiliários.
O economista americano Hyman Minsky desenvolveu um paradoxo chamado de paradoxo Minsky. Ele dividiu as estruturas financeiras em garantidas, hedged, especulativas e Ponzi, sendo essa última a mais perigosa e a mais adotada entre os especuladores no mundo todo. Segundo ele, uma unidade ou uma economia com estrutura garantida ou, hedged, pode atender confortavelmente o seu serviço da dívida dos países ou de pessoas individuais não levando em conta apenas os âmbitos macro ou microeconômico, por exemplo. Para resumir esse primeiro modelo, ele funciona pelo pagamento de juros e a amortização do principal, a partir de suas receitas correntes.
Quando se têm condições de pagar apenas os juros de seus financiamentos, sendo obrigados a levantar novos fundos, quer através de vendas de ativos ou de novo endividamento para pagar o principal, diz que essa estrutura financeira é especulativa. Agora quando uma empresa ou uma economia não pode pagar nem os juros nem o principal de sua dívida, a não ser obtendo novas entradas, isto é, através de um aumento contínuo e cumulativo do seu endividamento, estaremos diante de uma estrutura “Ponzi”.
Esse último caso é o mais perigoso. Leva esse nome Ponzi porque foi adotado a partir do golpe financeiro da pirâmide organizado por Charles Ponzi que prometia lucros elevados para as aplicações de investidores, mas que podia pagar esta primeira rodada de seus financiamentos somente com uma segunda rodada, depois esta a partir da terceira e assim por diante, isso lembra alguma coisa para você, caro leitor? Formas mágicas de enriquecimento através de cursos pela Internet, coaches financeiros trabalhando dia e noite para que milhares de pessoas minerem criptomoedas, o advento das apostas, tudo isso não é por acaso. Mas, o que realmente o efeito Ponzi faz, mais cedo ou mais tarde, é causar uma diminuição ou uma paralisação da entrada de aplicações de novos investidores, de tal maneira que toda a estrutura montada a partir deste jogo desabe.
Por outro lado, com a miríade da disruptiva expansão do setor financeiro, que ganhou força com o fenômeno e na ponta de lança da globalização técnica ou tecnológica, principalmente e com destaque para o boom das telecomunicações e da Internet nas últimas décadas, vemos cada vez mais os mercados financeiros de todo o mundo, acelerando as fronteiras da negociação automatizada com um processamento ubíquo de dados, inteligência artificial, realidade aumentada, entre outras, vêm sendo expandidas na prática. É o caso do blockchain, a tecnologia que serve de base ao bitcoin, o mais novo ativo-sensação do mundo financeiro. O processo de informatização, que ganhou inúmeras esferas da vida social, não poupou o dinheiro, com consequências que ainda estão por ser devidamente compreendidas ao longo do nosso texto.
Essa financeirização do mundo também se reflete no aumento da concentração de renda, que causa maior desigualdade e má distribuição de renda, além, é claro, do fenômeno rentista. Segundo o autor e economista brasileiro Ladislau Dowbor em seu livro, A Era do Capital Improdutivo, o retrocesso nos Estados Unidos é particularmente preocupante e explica, sem dúvida, transformações políticas recentes. Segundo ele, de 1980 a 2014 a renda média nacional por adulto cresceu 61% nos Estados Unidos. No entanto, a renda média antes da tributação dos 50% com menor renda individual (individual income earners) estagnou em cerca de 16 mil dólares por adulto, ajustados à inflação. No contraste, disso, a renda explodiu (skyrocketed) no topo da distribuição de renda, subindo 121% para os 10% no topo, 205% para o 1% no topo, e 636% para o 0,001% no topo.
O fato mais importante é que o aumento da riqueza no topo se deve essencialmente ao rendimento de aplicações financeiras e o capital improdutivo tem sido medido tradicionalmente a fim de revelar a desigualdade de renda, sendo que o próprio coeficiente de Gini traz que quanto mais elevado, maior será a desigualdade. O professor diz que para termos ordens de grandeza, o coeficiente de desigualdade de renda está na faixa de 0,25 na Suécia, 0,45 nos EUA, 0,50 no Brasil e próximo de 0,60 na África do Sul, e neste caso ainda há pouco submetida ao regime do apartheid. Mas, a desigualdade de riqueza é incomparavelmente maior, atingindo o absurdo nível de 0,80, uma desigualdade ainda mais espantosa.
Referencias:
[1] Licenciado em História pela UCSAL
Bibliografia:
DOWBOR, Ladislau. A era do capital improdutivo. Ed. Outras palavras & Autonomia literária. 320p. 2017.
HAYEK, Friedrich A.Von. Os fundamentos da liberdade. Série: Pensamento Político. Ed. Unb. Universidade de Brasília. 522p. 1983.
KEYNES, John Maynard. Teoria geral do emprego, do juro e da moeda. Série - Os economistas – Keynes. Ed. Nova Cultural. 286p. 1988
LAVINAS, Lena; MARTINS Norberto M.; GONÇALVES, Guilherme L.; WAEYENBERGE, Elisa Van. Financeirização: crise, estagnação e desigualdade. Ed. Contracorrente. 1344p, 2024
MANDE, Ernest. O capitalismo tardio. Série - Os economistas – Mandel, Ed. Nova Cultural. 1985.
MARX, Karl, Das Capital, Vol. I. Livro III, Capítulo VI.
MINSKY, Hyman. Estabilizando uma economia instável. Ed. Novo Século, 448p. 2014.
NOZIK, Robert. Anarquia, estado e utopia. Ed. Martins Fontes. 496p. 2011.
PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI e a economia da desigualdade, Ed. Forum, 293p. 2018.
WALLERSTEIN, Imanuel. Capitalismo histórico e civilização capitalista. Ed. Contraponto. 144p, 2007.
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